Não tenho assistido a programas de competição culinária. MasterChef Brasil, por exemplo, eu só soube que foi o maior sucesso porque via um monte de gente aqui no Facebook comentando. Soube que havia uma participante que era Estatística e cozinheira, como eu. Aí, sem nunca a ter visto, simpatizei com a moça e esse foi o vínculo mais forte que eu tive com o programa.

Acontece que outro dia uma virose me derrubou e fiz uma maratona de um desses. O título do programa não faz referência a chefs e sim a cozinheiros, mais a minha praia, já que ser chef envolve técnica apurada, que eu não tenho.

Nesta edição do programa, os participantes vêm em dupla, acompanhados por algum parente. Gostei da proposta: cozinhar em família. A partir de certo ponto, a dupla se separa e os integrantes passam a concorrer individualmente. Comecei a assistir e, a cada episódio, uma das participantes foi ganhando a minha torcida: Gonçalina, cuiabana que chegou ao programa com sua irmã, Valdeci (vulgo Valdelícia, por sua comida deliciosa, segundo ela mesma). Gonçalina iniciou a vida como doméstica e, tendo sido uma das melhores alunas em um curso de confeiteiros pago pela patroa, acabou contratada pela confeitaria.

Enquanto vários participantes enredam-se em estratégias altamente incentivadas pelos jurados, para aquecer a rivalidade, Gonçalina simplesmente cozinha. Há o participante certinho, metódico, apreciador de alta gastronomia. Há aquela que se vangloria o tempo todo de suas receitas reconhecidas internacionalmente, e que não está disposta a ouvir ou aprender absolutamente nada e nem a estabelecer troca com ninguém: é a detentora absoluta de todo o conhecimento; se os outros discordam, errados são eles. Já tem certa idade, então, se a esta altura não entendeu o processo, deve ficar mesmo para a próxima temporada daquela produção mais séria, a tal da Vida (pois é, eu acredito em próxima edição). Tem também o outro, que pensa somente de forma estratégica, calculista, e joga friamente. Pode sair vitorioso, dependendo do que se julgue vitória.

Já Gonçalina faz comida que arranca suspiros dos jurados (como sua irmã também), mas com um tempero a mais. Em certo ponto, a irmã, já concorrendo sozinha, “faz a egípcia” – palavras suas – e ignora, além dos outros participantes, um pedido de Gonçalina, de sugestão sobre qual preparo fazer de um bacalhau (Valdelícia parece ser mais criativa, mas aí me perde – não há prêmio que justifique voltar as costas a um irmão). Enquanto isso, a Gonçalina, pessoa simples e bonita que só, olha para o lado, vê uma concorrente em desespero, com a comida toda salgada, e acode: “Corre lá, pega creme de leite culinário pra melhorar isso!”.

O próprio noivo da concorrente desesperada já havia provado sua comida salgada, virado as costas e se limitado a comentar com os outros que ela teria acabado com o prato, com tanto sal. Mas Gonçalina, não. Com seu coração de cozinheira, não consegue ver uma panela inteira desperdiçada, uma pessoa aflita ali do lado, sem ajudar. Acaba salvando tanto a panela quanto a participante: naquela rodada, a moça, que andava com a corda no pescoço, vence o desafio. Não teria vencido, certamente, sem a dica da Gonçalina, que fica quietinha, sem esboçar qualquer menção de revelar que teria sido ela a salvadora da pátria. Também não esboça mágoa por não ter sido mencionada. E me ganha de novo aí – gosto dessa gente justa e que vai, silenciosamente, salvando o mundo, como num poema de Borges.

Em outro momento, por estar em vantagem na competição, Gonçalina é dispensada de uma prova e convidada a juntar-se aos jurados, julgando os demais. Diante disso, uma das concorrentes afirma que ela *certamente* iria beneficiar a irmã e é interessante, nesse momento, ver como as pessoas julgam as outras por si próprias. Gonçalina acaba, por fim, escolhendo o prato da irmã (ela e uma parte dos jurados, diga-se de passagem), mas fica claro que o escolheu porque, de fato, gostou mais do prato que a irmã fez e não para beneficiá-la. Pede desculpas a todos, depois, pela franqueza de seus julgamentos.

A despeito de estar em uma competição, Gonçalina ensina receitas a todos, dá dicas, resgata quem está em apuros ao lado – e levava bronca da irmã o tempo todo por isso, enquanto ainda formavam uma dupla. Entende, em sua parca educação formal e abundante sabedoria, que cozinhar é doação, partilha, é uma forma de amor.

Reconheço que há chefs tecnicamente perfeitos e que não se envolvem emocionalmente com as pessoas ao redor. Podem, sim, produzir comida magistral, deliciosa, não é a isso que me refiro. Mas é isso o que os distingue das cozinheiras que me inspiram – sim, são mulheres, as de quadril e coração grandes, feito a Gonçalina.

O programa pretende escolher o melhor cozinheiro do Brasil. Ali, para mim, só existe, nesta edição, uma única pessoa disposta a alimentar quem está por perto. Uma única cozinheira, portanto. Para mim, já ganhou. Ou, pelo menos, me ganhou :-)

Imagem: Frase do Mia Couto, por Paradoxos.