Quando criança, eu era uma das mais novas da rua e, nas brincadeiras, meu irmão mais velho já ia dizendo que eu tinha que ser “café com leite”. Eu detestava aquele negócio de café com leite, chorava e dizia que queria brincar de verdade. Meu irmão ficava possesso: em algumas das brincadeiras, o perdedor – invariavelmente eu, a pirralha – tinha que passar por um corredor polonês (café com leite era aprendiz e ser café com leite me livraria disso). Meu irmão não deixava que eu passasse no corredor polonês, ficava com pena e passava em meu lugar, terminando os dias cheio de marcas de tapões. Dia seguinte, a mesma lenga-lenga e ele me fuzilava com os olhos: “Você vai ser café com leite!”. Eu ameaçava chorar, ele cedia e acabava, de novo, cheio de marcas vermelhas pelos braços, pelas costas. A psicologia era outra e quando a gente apanhava dos colegas na rua, ouvia, em casa: “Não comece briga, mas se apanhar, bata também”. Por causa dessa psicologia, certa vez quase matei um menino e minha mãe junto – ela, de susto. Ele vivia me mordendo e tanto minha mãe quanto a dele me diziam que eu precisava aprender a revidar, precisava bater nele também, só assim ele me deixaria em paz. Passei tempos levando mordidas, mas sempre fui assim: há, em mim, o dia da gota d’água. Naquele dia, chamei o garoto em casa e, dissimulada, disse que íamos brincar. Já tinha deixado minha vassourinha a postos e quando ele cruzou a porta e adentrou meu território, comecei a dar vassouradas, uma seguida da outra, sem nem ver onde. Quebrei a vassourinha nele. Minha mãe intuiu o que estava acontecendo e eu a ouvia gritar: “Dida, corre, acode, vem me ajudar que ela vai matar o Glauco!”. Glauco não morreu naquele dia e, que eu saiba, ainda está vivo. Nunca mais me mordeu.

Havia, nessa época, um outro menino que me batia no recreio da escola (sei lá por que, meninos gostavam de me bater). Ele tinha me pedido para namorar e eu não quis, estava apaixonada pelo Fábio Jr e era fiel a ele. Recusar namoro, aos seis anos, é coisa seriíssima, pode-se ganhar um inimigo para toda a vida. Depois, um dia, ao se virar do quadro-negro, a professora me perguntou se o tal garoto estava fazendo bagunça e eu respondi que sim. Humilhado com tanta afronta, ele me batia. Meu irmão ficou sabendo que eu andava apanhando e, certo dia, decidiu esperar o menino na saída do colégio, antes da área onde os responsáveis esperavam por nós. Levou o garoto para um canto e cobriu de pancada. Passamos aquele ano assim: vez em quando eu apanhava do menino no recreio e o menino, no dia seguinte, apanhava de meu irmão, na saída. Bem verdade que tínhamos um código de ética: resolvíamos nossas diferenças entre nós, nesse jogo de civilidade duvidosa (as crianças de hoje não têm a menor ideia de quão cheia de desafios era a infância no passado). Um dia, finalmente, meu irmão quis saber por que o garoto me batia. Se perguntada, eu costumava dizer a verdade. Havia dito a verdade para a professora e disse a verdade para meu irmão. Quando soube do que havia se passado, o mano ficou enfurecido: “Se eu soubesse que você era cagoete, tinha ajudado ele a te bater!”. Aprendi, assim, que ser cagoete é coisa terrível e larguei dessa vida. Nunca mais!

Tínhamos um jogo de bola em que cada um precisava escolher representar um país. Havia uma querida família vizinha, amigos até hoje de minha família, que vinha de uma cidade mineira chamada Elói Mendes. Acho que eu os ouvia falar de Elói Mendes com carinho e, no meu imaginário, Elói Mendes era algo como o paraíso. Quando chegava minha vez de escolher meu país no jogo, eu nem titubeava: “Quero ser Elói Mendes!”. Meu irmão tentava me convencer: “Você não pode ser Elói Mendes, Elói Mendes não é país, é cidade!”. Eu entristecia – nessa época, bairro, cidade, país… era tudo a mesma coisa para mim: “Mas eu queria tanto ser Elói Mendes…”. Meu irmão cedia – ele sempre cedeu por mim. Assim ficava sendo e Elói Mendes teve, em mim, por um bom tempo, sua mais fervorosa representante, sem que eu haja, um dia sequer na vida, colocado os pés lá. Meu irmão gosta de lembrar essa história. Ele costumava repetir: “Não é por ser minha irmã, não, mas o cara que casar com ela vai tirar a sorte grande. Com qualquer outra, teria que se virar numa lua de mel em Paris pra fazer a mulher feliz, mas com ela, só levar pra conhecer Elói Mendes e pronto, tá realizada”.

O irmão cresceu e foi morar em outro estado. Às vezes, embora haja internet e zapzap, dá saudade ter irmão por perto, principalmente se for irmão desses, melhor amigo, que ama a ponto de apanhar, no lugar da gente.