Nas duas últimas semanas, textos de Zélia Duncan e Arthur Dapieve, ambos despedindo-se de suas gatas, Doralice e Gabi, respectivamente, me comoveram. Dapieve descreve de forma precisa o sentido desses escritos: “Ocorre-me que para esse luto sem velório, obituário ou anúncio fúnebre, para essa dor terrível, mas que afeta diretamente apenas um indivíduo, um casal, no máximo uma família, para essa saudade sem expressão social, um texto assim é o modo de comunicar à praça: ei, a Gabi existiu, eu a amava, e fomos muito felizes juntos.”. Em minha própria família, acabamos de nos despedir, em um curto espaço de tempo, de duas parentes peludas, cadelinhas que eram uma extensão dos núcleos humanos que as acolheram. Uma delas se foi com 19 anos de idade, anos bem vividos, e chorei suas mortes, não tenho qualquer pudor em admitir. O sentimento por elas é de gratidão pelo tanto que deram.

Só quem experimentou o amor por um ser de outra espécie tem noção da dimensão dessa relação. Em mim, o amor por meus bichos, a percepção de sua personalidade individual, única, despertou compaixão por todos os outros animais. O que se sente não tem outro nome: é amor, sim, e há quem se incomode com isso. Sempre haverá quem se incomode com qualquer coisa. Vejo, às vezes, pessoas sugerindo que se troque o acolhimento de um animal pela adoção de uma criança. Confesso que fico meio pasma com a leviandade, a meu ver, dessas colocações. A adoção de uma criança, quando feita pelas razões certas, é, sem dúvida, um gesto belíssimo de entrega, de disposição para amar, de construção de uma relação pautada principalmente pela doação de amor, sem, sequer, o estímulo vaidoso de se ver traços físicos, genéticos, reproduzidos em outra pessoa. Não estou sugerindo que seja errado exibir felicidade ao reconhecer seus próprios traços em um filho, não é isso. Mas traços físicos eventualmente acabam sendo levados, de qualquer forma seriam: pelo tempo, pela terra ou pelo fogo. O que provavelmente fica, na relação de pais adotantes com seus filhos, o que de qualquer forma ficaria, em qualquer relação entre pais e filhos, biológicos ou não, é o que se pode dar de verdadeiro, por construção, com exemplos, é a esperança de se ver valores multiplicados. É uma relação nobre. Mas a construção desses valores, a preparação de uma pessoa para o mundo é uma tarefa que envolve muito mais do que apenas manter vasilhinhas com água e comida frescas, uma caixinha de areia asseada, vacinação em dia e colo disponível. É um passo que, portanto, só deveria ser dado de forma consciente, por aqueles que se sentem verdadeiramente dispostos à maior entrega possível: a de, por vezes, chegar a abrir mão de si mesmos em favor de outra pessoa; a de buscar o aprimoramento de si mesmos, tentando formar uma pessoa melhor do que se é.

Esses discursos, na linha “troque seu cachorro por uma criança pobre”, também me soam como se uma forma de amor invalidasse outras. Ou como se houvesse apenas uma forma válida de amor. Amor verdadeiro, aquele que desperta a entrega e faz com que nos desprendamos de nós mesmos, aquele que traz a sensação boa de que, ao doar, estamos, de fato, recebendo, esse é sempre bom. Revigora, protege, liberta, cura. Resgata o melhor que há em nós. Então, seja de que maneira for, que bom que ele exista! A forma como ele se manifesta pode variar de pessoa para pessoa, ou pode ser variada em cada pessoa, não há mal aí. Afinal, amor não é recurso formatado e nem finito, a ser usado parcimoniosamente, quase que com medo de gastar.

É uma experiência fantástica acolher um ser de outra espécie, descobrir-se amando essa criatura, ver-se aflito quando adoece, temer a perda e, surpreendentemente (e é aí que se forma esse vínculo tão incompreendido por tantos), em determinado momento descobrir-se, também, amado. Perceber o amor retribuído na espera diária na porta, no retraimento ao ver malas sendo preparadas, na falta de apetite – aquele apetite usualmente infinito – durante nossas ausências, na espera de que nossos olhos se abram para o bom dia infalível e sempre em festa,  no pedido de colo para dar e receber carinho. Tudo isso resulta em troca de energia saudável, fluida, nobre. Vivência tão especial que pode, até mesmo, preparar alguns para mergulhos mais profundos, quem sabe? O que importa, de verdade, é que cada um descubra formas de dar e receber amor, mas amor verdadeiro, aquele que arrefece o ego, e a gente sabe quando está diante dele, é fácil reconhecer porque, seja lá qual for o veículo para que se manifeste, é o que traz sensação de bem-estar.

 

__por Mariane Branco.