Às vezes chego a pensar que as palavras me abandonaram. Elas passam tempos sem me visitar e penso, então, que não virão mais. Costuma acontecer nas fases em que dou maior atenção aos números. As pessoas me dizem, com alguma frequência, que os números devem sentir ciúmes das palavras, mas a verdade é que nunca aconteceu assim. Os números são tranquilos, introspectivos, generosos, vivem lá no cantinho deles sem fazer alarde e não se ressentem de nada, tampouco da atenção que dedico às palavras. Posso recebê-las sem que eles demonstrem qualquer afetação e se é que sentem ciúmes, guardam os ciúmes muito bem guardados com eles, em segredo. Talvez, justamente por haver muitas letras entre meus números. Há, entre eles, aleatórios X’s, Y’s, Z’s e outras tantas letras d’antanho: sigmas, thetas, psis, deltas e outras, tão belas quanto estranhas. Imagino que ocorra assim: já que eles, números, têm contato com as palavras despedaçadas, fragmentadas, talvez as sintam conhecidas e cheguem a tomar com elas certos graus de liberdade, afinal as veem, com alguma frequência, fora de sua melhor forma – cacos de palavras, as letras. Elas, palavras, orgulhosas, parecem fingir que não se fragmentaram diante deles. Elas os ignoram. Elas, sim, desconfio, guardam baita ciúme dos números.
Quando organizo demais a cabeça para os números, as palavras partem, parecem gostar de ambientes menos ordenados. Ou talvez me digam: se está arrumando a casa para eles, que fique com eles. São voluntariosas, vêm quando bem entendem e há muito desisti de tentar convidá-las. Não fazem cortesias: ignoram solenemente meus convites, sem qualquer satisfação. Fico triste quando fazem assim, porque quando me visitam, elas sabem me contar sobre mim melhor do que eu sei de mim mesma. São elas que me contam, sem que eu sequer pergunte, quais memórias ficaram – memórias que elas vão buscar em cômodos acessados por caminhos que desconheço -, contam-me quais sentimentos me marcaram, quais momentos me fizeram feliz e quais me entristeceram. Contam-me, simplesmente, brotando de dentro de mim, sementes selvagens, sem que me caiba poda ou adubação. Já os números, que contam tudo o que há no mundo, de mim só sabem contar o que mora no pensamento, contam apenas o subconjunto racional. Eles me parecem naturais – até os complexos – e gostam quando invisto horas em sua companhia, dão retorno proporcional ao tempo que passo junto deles. Já as palavras, que nada sabem de enumerabilidades e de conjuntos racionais, me contam o que fica atrás do pensamento (como queria Clarice, de quem elas eram tão íntimas e, desconfio, de quem jamais se afastaram). As palavras dão conta de um preenchimento do caminho – nem sempre reto, é verdade – que conjuntos racionais não comportam. As palavras são irracionais, estranhas, e parecem dar retorno desproporcional a minhas investidas. Quanto menos invisto, mais brotam e, por outro lado, parecem querer seu próprio espaço: se tento me aproximar demais, vão-se embora, dão-me as costas sem me explicar o que queriam de mim. Então aprendi a deixá-las livres para irem e, se quiserem, voltarem, feito o pinguim que uma vez vi, emocionada, aquele que volta uma vez por ano para visitar o pescador que o salvou.
Hoje, sem que eu esperasse, vieram me visitar cedinho. Não me importo, já me levantei da cama outras vezes para recebê-las. Hoje me acordaram com afagos na cabeça e me fizeram menina de novo, me fizeram sorrir. Por isso perdoo suas ausências e seus humores: porque quando elas vêm, me fazem sentir essa tamanha, imensa gratidão pelo presente que trazem consigo: elas me dão momentos de plenitude, cuidadosamente embalados em papel brilhante, com laço bonito de fita. Às vezes me confiam presentes – estes, os mais raros – destinados a entregas futuras, de um tempo que elas me dizem que virá, e eu os vou guardando como relíquias bem cuidadas, armazenados em gavetas até o dia em que os possa entregar a seu destino.
Bem sei que as palavras têm lugares mais interessantes aonde ir, sei que têm pousos mais requintados, onde se acomodam mais elegantemente – visito alguns desses com certa frequência, observo como se acomodam bem por lá e entendo sua predileção. Se eu fosse palavra, também gostaria de passar tempo longo junto do Mia, do Pessoa, do García Márquez, do Cortázar, do Borges, da Clarice, do Drummond, do Guimarães Rosa, do Manuel e do Manoel, do Whitman e de tantos outros, quase todos já longe de nós, mas de quem elas, tão íntimas, devem saber o endereço atual. Conheço esses pousos onde elas se hospedam, reconheço sua requintada elegância, aquela que chega a parecer simplicidade, e gosto de ir a seu encontro nesses sítios. Ainda assim, elas me reservam algum tempo, o que julgo ser alguma deferência, por isso me basta esse tempo que me dão, quando se dispõem a vir até mim. Sou grata a elas por aceitarem as acomodações que posso oferecer. Feito pessoa apaixonada e que não ocupa lugar de destaque na vida do objeto de seus afetos, aceito delas o tratamento que jamais aceitaria de qualquer outra paixão: recolho seus afagos e seus presentes a qualquer hora não marcada em que me queiram visitar e vou sendo alegre assim, de uma alegria vadia, sem saber quando receberei suas visitas breves, descompromissadas, mas que enchem meu coração de calor e põem vida em minha vida.
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