Há sins que nascem com dor, a fórceps: queriam ser nãos, então resistem a vir à luz. Assim nasceu meu sim de ontem. A cidade mudou e as amendoeiras não são mais bem-vindas. Ninguém mais se comove com as cores outonais que enfeitam fileiras de canteiros. Agora são exóticas. Faz muito que tento aprender que exótico é ruim, preciso me convencer disso – insisto em achar exótico bom. Amendoeiras, além de exóticas, têm raízes grandes e profundas. Raízes tão profundas também são ruins: destroem camadas superficiais e é com isso que a maioria se preocupa, com a superfície, em tudo. Por isso os condôminos se reuniram para arbitrar sobre teu destino e de tuas irmãs. Antes veio o especialista que informou que tua vida útil já tinha chegado ao fim. Falaram-nos dos perigos de te mantermos. Contaram-nos que teu tronco é tão robusto que, ao te dar descanso eterno, precisaremos plantar quarenta outras árvores. É esse o tanto que vales, junto de tuas irmãs menores: vales por quarenta! Parece que tua sombra também anda desbalanceada, devido a anos e anos de podas inadequadas. É isso que te coloca em risco de tombar. Diante de todo o risco e acreditando que tu podias mesmo estar querendo jazer, acompanhei o sim dos condôminos. Acontece que agora há pouco cheguei e fui ter contigo, ver teu tronco e toda a vida que se apoia nele, olhar tua copa generosa e ver mesmo as tuas raízes que ameaçam o muro e craquelam a calçada. Não, não te constranjas, nada disso culpa tua. Tudo culpa nossa, que te trouxemos para onde não devias estar e que, ao tentar conter teu crescimento, fomos inaptos. Fiquei ali te olhando longamente e me dei conta de que ontem só briguei para que tua partida não deixasse para trás árido vácuo em nossa calçada. Só me preocupei com garantir que em teu lugar fossem plantados ipês e quaresmeiras que florissem belamente e enchessem meus olhos de cor. Houve quem reclamasse da “sujeira” que os ipês promovem nas calçadas. Aquele tapete de beleza a céu aberto… Sujeira!!!! Exclamei, ri, não consegui conter meu riso, mas riso triste, deboche de quem já desistiu de ter esperança na maioria. Só briguei para que tivesses substitutas que estivessem à tua altura e amarrei meu sim a essa condição, obrigando todos os condôminos a compromisso registrado em ata. Só hoje me dei conta de que em nenhum momento, ao acompanhar o sim dos condôminos, briguei por ti e por tuas irmãs. Talvez tenha brigado briga errada. Logo eu, que por não gostar de brigas, escolho com tanto cuidado as minhas. Acreditei no especialista e acontece que hoje, ao ter contigo, não consegui te enxergar morrendo e me senti conivente com uma eutanásia cruel, de doente que talvez pudesse viver. Quis ouvir outros especialistas, há tantos que erram por aí, quem sabe o nosso estivesse errado… Quis voltar no tempo até ontem e engolir meu sim, aquele sim regurgitado, para o qual fui colocando tantos obstáculos até que não houvesse mais pedras com que pudesse construir minhas barreiras. Só hoje entendo porque fui colocando barreiras: é porque não queria que te matassem, que te matássemos (sim, eu também). Quis engolir aquele sim como já quis engolir tantos outros. Não tenho como. Então resta me dirigir a ti como já fiz tantas vezes a todas as outras que me deram sombra um dia, que me deram verde e vida e tanto ensinamento, mesmo as bem menores que eu, infinitamente menores que tu: resta agradecer pelo tempo que ficaste, por todo o silêncio que nos deste, por toda a sombra, por todo o abrigo aos micos e aos pássaros, por teres abrigado minúsculas bromélias e tanta vida minúscula que nem consigo ver. Resta pedir perdão se não te tratamos bem e se te formos matar antes do tempo. Tu és maior que nós, bem sei. Não me parece certo que possamos ter o direito de decidir teu destino. Dentro de mim não há jeito de fazer essa decisão se acomodar como costumam se acomodar as coisas certas. És maior que nós, bem sei.
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