A experiência da montanha é sempre renovadora. Há, parece, alguma energia naquelas pedras que, de alguma forma, cria vínculo entre os que lá estão, mesmo os que jamais se haviam encontrado. Olham-se nos olhos e sabem: há conexão ali.
A trilha é uma só, mas a experiência da trilha em cada um, diversa. Para alguns, o reencontro de amigos que aquela mesma trilha uniu, há vários anos. O vínculo é forte e persiste, como persiste a emoção do reencontro naquele mesmo lugar e a mesma disposição para o abraço, para o riso e para o canto que os uniu. Para um, o registro da vastidão, no ângulo em que os pássaros a contemplam. Para outro, a superação de si mesmo. Para aquele, os minúsculos milagres escondidos de olhares desatentos. Para outro, a redescoberta da vida pulsando em si. Para ela, a captura de cada momento e, mais que tudo, versar livre sobre a trilha, que é outra, mas sempre a mesma: basta pôr os pés na trilha e o vento traz os versos; eles trilham caminho livre em seu pensamento.
Importa, para ela, cada ranhura na rocha, o lugar exato onde encaixar pés, às vezes mãos, cada superfície alisada até transformar a Terra em Lua, o trabalho persistente e vagaroso do vento com seus cinzéis. Quando passa alisando seus cabelos, o vento há de estar criando escultura que com o tempo, repetição e paciência, ganhará forma. Vai ser bonito ver o trabalho dos ventos daqui a alguns anos, nos cabelos já prateados… como a Lua. Importa, a ela, o momento pleno em que pássaro confia o suficiente para permitir o registro de si, depois de ter olhado em seus olhos. Importa o registro de que a lente não é capaz: aquele da mansidão e da paz em si, paz plena de vida, paz de sentir-se viva. A felicidade da liberdade e da superação em cada cume alcançado, a vastidão, a sensação paradoxal de segurança, de confiança em si, nos outros e em algo mais que não se vê, mas que é presente ao longo de todo o caminho e principalmente ali, no alto de tudo. O contentamento de se perceber, em vários momentos, sozinha na trilha e ser feliz consigo e com a trilha, não se sentir só, olhar o desenho da trilha até a curva longínqua, aquela que, a seu tempo, vai chegar, basta seguir trilhando. A trilha e seu preenchimento, a certeza de que a varanda, os pássaros e os amigos a esperam depois da curva, no lusco-fusco do dia que se despede e cede lugar ao canto das criaturas da noite, aquelas mesmas que o violão entoará mais tarde, acompanhado das vozes das outras criaturas da noite que chegarão de outras trilhas, com suas lanternas nas testas, fazendo lembrar seres de outras galáxias, emitindo luz própria.
O abrigo acolherá a todos. Cada um terá trazido comida suficiente para seu grupo, mas no abrigo todos são um e os diferentes grupos virarão um só: a comida de todos é de todos, uns abrigarão os outros e cada um se dará conta do que há de bom abrigado em si. O abrigo abriga a renovação de nossa esperança: não estamos sós, há outros que vibram na mesma frequência. Na montanha acontece sempre assim: o Universo vem dar de comer em nossa boca, suas colheradas são quentes e generosas. Horas se passam, há alegria, partilha, violões, flautas, cantos, danças, abraços, mas há, sobretudo, conexão. Alguns avisam que partirão logo, talvez antes mesmo de o sol raiar. Deixam seus contatos e a troca é verdadeira: há genuína vontade de reencontro, de reviver aqueles momentos, reencontro que, é possível, provável, nunca haja, a não ser na memória de cada um. Raia o dia, algumas camas já vagas, saudosas das cordas, mochilas e aparatos todos que as habitaram. Esquecido, no canto de uma, um saquinho com diminutas sementes que fazem lembrar alpiste. Inevitável sorrir: montanhistas são pássaros livres que vêm e vão, natural que se alimentem assim. Outra trilha nos espera; esta, Altar para o encontro daquilo que dezenas de anos esculpiram: a amizade verdadeira nascida naquelas montanhas.
Foto: Pico das Agulhas Negras – Itatiaia, RJ.
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