Sabores diVersos
alimento para o corpo e para o espírito
Resolvi criar uma página. Aqui, vou tratar de alimento: para o corpo e para o espírito. Literatura – em especial poesia – e cozinhar são duas das minhas paixões. Tudo começou com postagens em uma rede social e, às vezes, me sentia meio que empurrando doses exageradas da primeira delas a quem, eventualmente, não tivesse apetite pelo tema. Sei que há quem goste de literatura e poesia e sei também que as pessoas podem sempre passar batidas por posts que não lhes interessem, mas essa coisa, de tudo o que eu postava ter alguma chance de ‘invadir’ a time line dos outros, me fazia sentir um tanto inconveniente, ainda que ‘os outros’ restringissem-se àqueles classificados como amigos ou melhores amigos. Às vezes também esquecia de restringir o público a cada postagem e há postagens que sei que só interessam a alguns poucos.
Tenho compartilhado algumas das coisas que escrevo, coisa que antes eu não fazia. Não sou escritora, não mesmo, e se me colocasse assim, me sentiria ferindo o respeito que tenho pelos escritores que admiro. Há aqueles que me fazem parar para reler uma frase várias vezes e, de maneira tão verdadeira, tão incontestável, tão brilhante traduzem o pensamento, o sentimento – o deles e o meu! Têm uma escolha de palavras tão sincera, tão original, tão precisa! Esses são escritores e sei quem são os meus escolhidos. Aqueles que têm me alimentado ao longo da vida. Acho boa a sensação de repartir esse banquete e pretendo fazer isso aqui na página. Não quero ser professoral. A ideia é repartir o que me toca. Nessa hora, me sinto aluna dividindo o caderno com o colega. Vez ou outra, deve pintar algo escrito por mim, um pratinho mais básico, trivial, porque há quem me diga que se sente bem lendo minhas lembranças e pensamentos aleatórios. Aí me sinto bem também, porque é bom saber que a gente produziu algo que fez bem aos outros.
Tem também a cozinha. Sobre isso, então, que é uma grande paixão, e talvez aquilo que eu faça de forma mais intuitiva, eu raramente escrevia. Sempre achei que era impor, a gente demais, um tema muito específico. Mas cozinhar faz parte de mim, de quem sou, desde que, ainda pequena, me enfiava lá na cozinha de casa e queria porque queria cozinhar também. Cheguei a frequentar alguns grupos de amantes da cozinha em redes sociais, mas aí me faltava algo: a troca se restringia a receitas, não era troca de afinidades. Algumas vezes, eu percebia no ar – talvez eu seja muito cri-cri – um quase concurso de quem está mais próximo de se tornar o mais novo chef-virtuoso-ainda-que-amador do pedaço.
Eu nunca pretendi ser chef. O que busco é a cozinha das cozinheiras de quadril largo, bunda grande, ancas generosas e cara brilhando pelo vapor das panelas. Quero a cozinha que leva para nossas entranhas não só a comida, mas nós mesmos. Aquela que nos faz viajar para dentro de nós. E para isso, o veículo pode ser um trivial purezinho de batata com carne moída. Mas até pra fazer carne moída, tem jeitinho especial e é isso o que faz as pessoas embarcarem na viagem: o borogodó que só comida feita com afeto tem.
Quando cozinho para pessoas queridas (saiba que, se já comeu na minha casa, você é pessoa querida; este é um ritual sagrado para mim) , o que me interessa é a troca que a comida propicia. Vejo claramente que ela serve como um gatilho: à medida que vão gostando do que provam, junto com o olfato e as papilas gustativas, as pessoas parecem ir abrindo a alma. Aí, um dá um suspiro de agrado aqui, enquanto outro, ali, lembra um sabor da infância e de repente a comida já não é mais o fim: foi o meio. Gosto daqueles almoços em que a reunião começa ainda na cozinha, enquanto a comida é preparada, e, quando servida, com a ajuda de todos, abre-se uma roda demorada de conversa, daquelas em que ninguém se atreve a deixar a mesa ou as poltronas próximas e o bate-papo e a troca vão tomando conta do ambiente e entardece e alguém volta lá no fogão (microondas não!) pra esquentar o que sobrou – bateu uma fominha de novo – e quando a gente vê, é noite, e passamos horas nos alimentando, nos retroalimentando. Gosto daquelas reuniões que começam no início da noite e varam a madrugada, com a mesa, o violão, a flauta e as vozes todos em uníssono, ainda que a gente cante cada um num tom, para desespero dos musicalmente mais dotados.
Tenho uma grande e querida amiga que, sempre que convidada a ir lá em casa, me responde: “Ih! Já vi tudo: tá me chamando pra cair no buraco negro!”. Gosto que seja assim, que a gente caia num buraco, mas um buraco bacana, generoso, que tem lá no fundo uma cama elástica que nos ampara e nos faz reencontrar as crianças que fomos, que somos, tudo isso tendo a comida como pano de fundo, porque, afinal, tem coisa mais gostosa do que gargalhada e gulodice de criança?
Nessas conversas, dos almoços e dos encontros em casa, com frequência a gente fala de música, conta piada, ri, fala de livros, conta histórias do passado – algumas, dependendo de quanto vinho já se bebeu, constrangedoras – e, às vezes, tem até poesia lida ou recitada de cor, como mais gosto, vinda de dentro. Não raro, há alguém de máquina em punho, peneirando os momentos e capturando aqueles que merecem ser guardados. E tem sempre alguém que pede alguma receita.
Pedido de receita, pra mim, é coisa séria. Faço verdadeiros julgamentos de caráter sobre quem se nega a dar receita ou dá receita escondendo o pulo do gato. Acho coisa de gente muquirana, mesquinha. Então, por princípio, reparto as minhas. Elas não são muito precisas, tipo ‘tantos gramas disso, tantos ml daquilo’. Meu dia a dia é cheio de fórmulas, que acho belíssimas e que me deram tudo o que tenho, mas na cozinha, não as quero. Ali, é espaço para experimentar livremente. Reconheço que fórmulas permitem formalização de método e replicação, mas não é isso o que estou buscando quando vou cozinhar. Ali, tudo o que quero é intuição, liberdade. Total. Com todos os riscos que a liberdade total pode trazer. Eventualmente, pode não dar certo, fazer o quê? As fórmulas me ensinaram há muito tempo que existe um prêmio e um preço associados a toda escolha. Os prêmios têm superado os preços, então essa estratégia está boa para mim. Entre os preços, um tiquinho de caos na hora de passar as receitas a alguém, mas tento, vou continuar tentando. As quantidades de ingredientes que eu informo (salvo aquelas que chegaram na receita original que recebi), são estimativas. Sou professora e Estatística, vivo de ensinar e de fazer estimativas. Elas devem ser razoáveis, tenha um pouco de fé. E ouse mudar, se sua intuição mandar! Eu mudo, sem dó nem piedade. Se não der certo, a gente melhora na próxima vez. Só não vai fazer isso com a casa cheia de visitas, né? Chamar o povo para comer e depois servir o experimento que não deu certo, não dá!
Essa é a atmosfera que eu queria dar à página. Permitir que aqueles que cheguem aqui, por vontade própria, sintam-se acolhidos e partilhem desse ambiente, já que não tenho mesa grande o suficiente para receber todos os que gostaria. É comunidade criada por pessoa que tem uma profissão que ama e, aqui, vai falar de hobbies, provavelmente mais nos finais de semana. Então que ninguém me cobre regularidade ou obrigação. Espero que, como acontece na vida, os amigos tragam alguns amigos que vão ficando e, quando percebo, já são meus amigos também. Mas se não for assim, não tem problema. Aqui é como casa e só veio visitar quem está a fim, então já vai ser bacana não ter pudores de ir falando do que me der na telha, decorando o espaço do jeito que faça sentido para mim e pondo em destaque o que me é caro, a mim, sem preocupação de agradar a outros gostos ou de estar invadindo o espaço alheio. Ainda assim, esperando acolher alguns, fazer com que se sintam verdadeiramente em casa. Aqueles que quiserem visitar, são mais que bem-vindos. Puxem uma cadeira, pode ser um banquinho ali ao lado do fogão (mas não muito perto, pra não atrapalhar o caminho da cozinheira!). Com o tempo, imagino que seja como na vida: os amigos mais fiéis são os que ficam, e isso também é bom. Fique à vontade para chegar, que a comidinha e o bate-papo são lentos, fartos, sem hora marcada pra ficar prontos ou acabar, mas, espero, prazerosos. E, no final, tem sempre um cafezinho, que acabou de sair.
Mariane Branco