Há as coisas que deixei na mesa. Amanhã seria um dia normal e as coisas estariam lá, acessíveis. Mas amanhã não foi normal, todos nos recolhemos em casa e lá está tudo o que deixei, como deixei, inacessível.
Queria o caderno de capa dourada e girassóis, poder decidir que fim daria a ele: palavras solares, inspiradas pela capa, ou anotaçõs de projetos? O caderno tem pautas e, maluquice minha, talvez, as pautas atrapalham a liberdade das palavras, que ficam aprisionadas… mas queria ter aqui o caderno, olhar para ele e decidir seu destino.
Há meus vasos coloridos de cerâmica, que acomodaram suculentas um dia e deviam vir para casa. As suculentas não gostam do pouco sol que há lá, ficariam melhores aqui e agora… agora talvez não sejam mais suculentas, talvez não sejam mais. Me dói pensar nelas e nos cachorros de lá, à míngua, na ilha deserta.
Havia a porção de levain com que alguém me presenteou e deixei na geladeira: amanhã levo, vai fermentar aqui como fermentaria em casa. Amanhã não houve e talvez o fermento tenha levedado tudo o que podia e morrido, sem ser alimentado. Tudo o que não é alimentado morre. Naquela véspera eu não imaginava que deixava o fermento para morrer.
Há as canetas multicoloridas e de escrita macia, recém-compradas, e as notas que, com elas, eu preparava. Interrompidas. Iniciei outras notas, de casa, monocromáticas, mas aquelas que iniciei lá, aquelas em que me senti tão inspirada, interrompidas. Não deixo de ter a impressão de que há, nelas, algo que me escapa e não consigo recuperar. Há sempre algo irrecuperável naquilo que ficou para trás.
Há o computador que sempre fica ligado e me permitia acesso remoto, até outro dia. O acesso remoto não me ajudava a saciar a sede de minhas plantas ou alimentar os cachorros e o levain. Há os meninos que por lá perambulam. Será que têm podido se alimentar? Talvez tenha sido melhor que o computador tenha se desligado, como desligou. Talvez, com conexão cortada, eu pare de pensar naquilo que, por ora, não posso alimentar, no que está fora de meu alcance, no que não posso salvar.
A mesa estava desordenada e assim está, foi como a deixei. Amanhã arrumo, hoje não dá tempo. Amanhã não houve. Então, me pergunto: o que estou deixando sobre a mesa – a grande mesa onde o jogo da vida se desenrola -, desarrumado, pendente, inacabado? Amanhã, talvez, não esteja a meu alcance. Melhor cuidar hoje.
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