Eu escrevo porque escrever é uma das minhas maneiras de processar o que sinto. A maior parte do que escrevo, escrevo para mim mesma, mas uma parte, aquela de que acho que alguns podem se beneficiar, vez ou outra compartilho. Obviamente, tenho escrito sobre perda. Natural, afinal estou processando uma das maiores perdas que se pode experimentar.

Entendam: quando a gente escreve sobre perda, quando a gente fala de perda, não é para que sintam pena de nós. Isso por um motivo muito simples: os processos de perda e luto são vividos individualmente; são intransferíveis. Então, de nada adianta que se apiedem de nós, até porque não acredito que luto seja motivo para pena. Carinho e afeto, sim, são bem-vindos. Ajudam – e muito! Não são capazes de eliminar a dor ou a tristeza – que essas têm mais é que ser vividas – mas acalentam.

Quando a gente fala ou escreve sobre perda, talvez seja como um alerta: um dia vai chegar e, nesse dia, seja quando for e por mais que a perda já esteja racionalmente aceita e compreendida, vai doer, porque por mais que a gente se ache preparado, a assimilação da perda é muito difícil. Só consigo pensar em duas maneiras de não passar por essa tristeza, essa dor: i) partir antes de todos os que amamos; ii) não ter amado. A mim, a primeira parece mais palatável. A segunda seria o equivalente a não ter vivido.

Luto não é motivo de pena, porque luto verdadeiro, profundo, é dor sim, mas dor que vem do amor. Amigos queridos me disseram: acalme seu coração. Mas ele está calmo. Triiiiste de uma tristeza profunda, mas tranquilo, porque não é tristeza desesperançada ou desesperada. É só tristeza do que foi e nunca mais vai ser e não há palavras capazes de eliminar essa tristeza. Sei que um dia as lembranças vão ser só bonitas, sem dor. Vão fazer o oposto do que fazem agora, vão trazer sorrisos.

Uma outra pessoa me perguntou: você consegue mesmo estar tranquila, serena? Sim. E talvez esse seja o ponto desta postagem, aquele de que outros podem se beneficiar. Estou vivendo ao mesmo tempo o luto por meu pai e por meu gato, Tim, que viveu 20 anos conosco e nos deixou quatro dias antes de meu pai. Para alguns, pode soar estranho que eu coloque o luto por Tim aqui, junto, mas já passei há muito da fase de ter qualquer necessidade de me justificar pelo meu amor e suas formas. Nos dois casos, eu não tinha pendências. Nos dois casos, expressei meu amor abertamente, sem ressalvas, enquanto pude, e fiz o quanto pude. Nos dois casos, tive reciprocidade e certeza de que meu amor foi percebido. Nos dois casos, recebi amor e gratidão em retorno, na mesma medida em que doei. Então acho que é sobre isso que escrevo: sobre poder ser grata por essa tristeza; sobre cuidar das pendências, porque deve ser terrível passar por um processo de tamanha dor sem ter o colchão da serenidade, sem ter a tranquilidade de pensar que nada ficou por fazer,  dizer, sentir ou resolver.

Talvez alguém leia isso e sinta disposição para trabalhar as pendências, senão com o outro, pelo menos consigo. Esse também não é processo fácil e, em geral, dói, mas a gente tem que parar de achar que processos dolorosos não devam ser vividos. Gente é para brilhar e é, também, para aguentar a dor, quando ela se apresenta. Acolher a dor, quando ela se impõe, dar direito a ela, porque assim como a alegria, ela é parte grande da humanidade em nós. Não acho sequer que dor seja o oposto à felicidade – se a felicidade for compreendida de forma ampla. Tudo é parte da vida, então tudo é certo, justo e necessário, como são necessários os acertos que nos apaziguam.

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Escrevi este texto há exatos dois anos. Hoje ele me apareceu entre as lembranças do dia. O que eu chamava de dor, quando escrevi, evoluiu para saudade – bem verdade que, muitas vezes, é uma saudade emocionada, mas não a chamaria de dor.

Lendo meu texto, me vieram à mente pessoas que acho que têm pendências a resolver com os seus e que, provavelmelmente, sofrerão perdas no futuro próximo.  Muitas vezes não conseguimos alertar os muito próximos – falta o distanciamento necessário para que nos ouçam.  Então a gente lança mensagens em garrafas no mar da web. Talvez cheguem a alguém que igualmente  precise delas.  Cuide de suas pendências, enquanto é possível.