Percorrer as ruas da cidade em que vivi tantas férias e finais de semana da infância e adolescência sempre me traz essa sensação de pertencimento, conexão comigo e com os meus. Não é só pelos vários cafés com bolo e conversas longas em casas alternadas de parentes e amigos que visito a memória. As ruas que percorro são, principalmente, vias interiores, que guardam aquilo tudo que mora atrás do pensamento, elementos que formaram a pessoa que sou.
Hoje esses trajetos são percorridos com uma dose grande de nostalgia. De um lado, a felicidade por ter tantas casas para regressar ou conhecer e ser recebida com o mesmo abraço, ter tantas memórias a compartilhar. De outro lado, alguma tristeza inevitável pela impermanência do que eu gostaria que fosse eterno. Encontro, hoje, casas e corações separados, de pessoas que fizeram parte de minha história e habitaram por muitos anos uma mesma casa. Alguns são reencontrados somente na memória preservada pelo afeto. Passo em frente a suas casas e as visito no lugar que habitam em minha memória e meu coração. Sigo meu caminho ciente do lugar cuidadoso em que meu afeto os guarda, ciente de que nossas ideias nos levaram a caminhos distintos e de difícil conciliação. Às vezes penso que houve tempo em que nossos pensamentos foram mais consonantes. Então me dou conta de que o que havia era um tempo em que nossos pensamentos não eram tão compartilhados. Nossos sentimentos – esses, sim – eram consonantes e isso, por si, nos bastava. A ignorância pode, sim, ser uma bênção. Percorro ruas e fotos saudosa desse tempo: consciência não significa ausência de nostalgia…
Lembro o Caio F.: “Já não sou o mesmo, como você também não é. Endureci um pouco, desacreditei muito das coisas, sobretudo das pessoas e suas boas intenções”. É natural que a gente endureça um pouco com o tempo, talvez seja até desejável. Inocência demais depois de certa idade, eu costumava dizer, é quase retardo. Sigo tendo uma inocência um tanto descompassada de minha idade, decepcionada com indelicadezas que hoje deveria considerar normais e acreditando nas boas intenções da maioria das pessoas. Hoje sou mais branda do que fui no passado. Sempre precisei externar em palavras aquilo que me fere. Palavra trancada adoece, sempre tive convicção disso – e palavra não dita é cura adiada. Mas também sei que a dureza de algumas de minhas palavras pode ferir – e já feriu, na mesma medida em que fui ferida . Hoje não digo que inocência seja retardo, mas inocência em excesso é falta de percepção adequada da realidade. Busco estar consciente. Quando o rompante de responder indelicadeza com indelicadeza me vem, interrompo o fluxo no ponto em que o equilíbrio descambaria para outra coisa e preencho o espaço com reticências. Aprendi a dar valor às reticências.
Mesmo com algum endurecimento, me dou por satisfeita por não classificar a maioria das pessoas de forma binária, boas ou más. Hoje acredito, sim, que há gente que opera no lado luminoso da força, há gente do lado negro da força (ô saudade do tempo em que acreditava que essas não existiam, saudade de uma versão mais nobre de mim!). Hoje sei: a maioria de nós, meros mortais, fica ali entre os extremos, em gradações várias de cinza, que também não penso que sejam estáticas – podem variar no tempo e espaço. Trabalhar para que, em mim, a gradação avance cada vez mais para o lado luminoso e que esse avanço seja tal que um dia, quem sabe, possa se manter estável, equilibrado, é o que tenho buscado e essa busca já ocupa grande parte dos meus dias para que eu fique procurando cabelos em ovos facilmente quebráveis.
Tenho tentado – com grande esforço, é verdade – deixar de criar expectativas sobre o outro, deixar que as ações de cada um me digam o que cada um pode ou não ser (para mim) e fazer paz com isso. Há gente que talvez seja bacana para os outros e só não conseguiu ser bacana com a gente, assim como nós com outros tantos. Natural, todo mundo tem uma meia dúzia de exemplos assim. Há gente cuja forma de pensar ou sentir não bate mais com a nossa – ou nunca bateu. Gente desprovida de gentileza ainda me fere e tenho buscado o amadurecimento de não me entristecer por isso – já era tempo de ter casca mais grossa e calejada. Em contrapartida, tenho aprendido a me afastar sem culpa, não sinto mais necessidade de compreender ou perdoar o mundo inteiro. Paralelamente, tenho aprendido a ter mais compreensão e doçura para mim, a me cobrar menos o acolhimento aos outros, a acolher mais a mim mesma e aqueles que posso acolher naturalmente, por afinidade, sem muito esforço, afinal não estou fazendo estágio para santa nessa vida e estou muito distante de qualquer nível de santidade. Alguns que me conhecem há muito tempo podem ver essa virada como desenvolvimento de egoísmo. Precisei aprender a ver como amor, respeito e preservação próprios, aprendi que não dá para tê-los sem estabelecer limites, sem deixar esses limites claros (para mim – porque felizmente também não tenho mais necessidade de verbalizar limites para mentes ou corações limitados).
Ar entrando e saindo pelas narinas, ombros para trás e peito aberto, espaço conscientemente criado para entrada do que é bom e saída do que pesa, acho que hoje caminho mais leve do que caminhava há uma década, embora com o peso da consciência do que eu desconhecia, em outras tantas décadas atrás. Sim, a ignorância pode ser uma bênção e a consciência tem seu preço. Mas isto, a maturidade me trouxe: me alegra perceber que, por mais que tenha desacreditado da capacidade de gentileza e sensibilidade de um ou outro, sigo acreditando em tantas (TANTAS) outras pessoas! Sou imensamente grata por ter tantos a meu redor que me mostram, com ações, que posso acreditar. Sou grata por meus guetos buscados e conquistados – construídos, alguns, por iniciativa minha de agregar semelhantes, gente sensível que se achava sem lugar e isolada por aí. Vejo as vias que percorri e me sinto feliz por ter e compartilhar pertencimento, por não ter desacreditado da delicadeza. Sigo convicta, crente fervorosa do amor, força propulsora maior. Quando alguma indelicadeza gratuita ameaça me ferir, consigo ter a clareza conquistada de avaliar se a ferida pertence ao outro ou a mim. Se a mim, hoje sei, tenho recursos suficientes para tratar. Se ao outro, não tenho que sentir dor por ferida que não me pertence.
As voltas em torno do sol têm tido saldo positivo e é na direção dele que aponto e sigo, porque tudo foi feito pelo sol, nous sommes du soleil. Com sol ou chuva, tenho seguido convicta de que gente é para brilhar e o brilho vem de dentro, então é preciso cuidar de estar nas vias que levem luz lá para dentro. Estar ou não nessas vias é escolha que cabe somente a mim.
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