Ah, minha Bruxa amada… faz dias que venho tentando assimilar tua perda sem lágrimas. Você partiu antes de o sol raiar e o Lô, ao anoitecer. “Se eu morrer não chore não, é só a lua…”. Tenho tentado não chorar, porque não te queria com dor, não queria te ver lutando para levar ar aos pulmões. Sei que foi melhor assim, tenho convicção plena de que você há de estar mais leve. Mas a saudade pega a gente de jeito, não tem jeito. Difícil pensar que nunca mais vou beijar teus cabelos brancos, macios, perfumados. Difícil pensar que nunca mais vamos nos abraçar apertado e nos cumprimentar sorrindo, olhos nos olhos:
__Ô, minha Bruxa!
__Ô, Bruxinha!

Já foram tantas as coisas banais nessa semana incompleta sem você que me fizeram ir a você… o tempero do feijão, o arroz com cenoura e linguiça, o perfume que te apresentei, o outro que você me apresentou e, hoje, as luzes nas decorações que começam a anunciar o Natal. Ah, Bruxa… Como é que a gente vai enfeitar a casa pro Natal sem chorar de saudade de você, que desde sempre fez o Natal ser o que é para nós? Como é que vou fazer pra não salgar o riso com lágrimas, quando lembrar de nós, crianças, te “ajudando” a decorar a casa pro Natal e quase destruindo a casa? Como é que vou sentir cheiro de pinheiro sem ser transportada pra tua sala em Venda Nova? Como a gente vai fazer pra rir da tua peruíce como sempre rimos, sem que a saudade deixe o riso nublado?

É TANTO o que te traz! Aquela Páscoa em que você reclamou:
__O que é que está havendo com essas crianças, que sempre avançam na comida e hoje estão comendo nada?
A mãe te respondendo:
__Cida, é Páscoa! Você fez coelho assado! Você assou o Coelho da Páscoa!
Tua lógica nonsense:
__Ué, é Páscoa… Páscoa: coelho.
Nunca comi teus coelhos, fossem assados, à caçadora ou quaisquer outros, de quem quer que fosse. Aquela Páscoa me traumatizou e até hoje não conheço o gosto de um coelho, me recuso a conhecer.

Foram tantos os filmes na minha cabeça, nesses últimos dias… o ano em que você fez, com fios de palha, as perucas das fantasias de bruxas, você nos maquiando, o batom preto. Era como se eu e Fabi tivéssemos uma personal carnavalesca. Teu talento fora da curva para o que quer que decidisse fazer. Esses dias tenho passeado muito pelas tuas pinturas perfeitas nas louças e cerâmicas, pelas tuas tapeçarias, tua inventividade pra criar muito a partir de quase nada: carnavalesca. Fiquei lembrando do pai, que contava que quando era seu colega nos bancos da escola no sítio de Pedro Branco e Mariquinha, você chegava, metida que só, fitas escorrendo pelos cabelos muito lisos, dizendo que Vovô Pedro achava você uma menina muito inteligente. E era mesmo. E é…

Lembrei a festa em que, depois de pronta, você quis me acrescentar várias pulseiras:
__Bruxa, não vou com esse monte de pulseiras, feito uma baiana de escola de samba…
__Baiana?! Onde é que tem baiana aqui?! Umas pulseiras lindas e você querendo ir assim, sem graça…

Também achou sem graça quando eu não aceitei ir acampar na Cachoeira dos Frades com seu casaco. Passaram-se muitos invernos desde aquele acampamento nos Frades. Lembro os dias que o antecederam, os preparativos com a turma de Heron, eu ali meio mascote no meio deles, me sentindo adulta aos 14; você querendo me emprestar o casaco da perua pra eu ir acampar “elegante” e a gente dando gargalhada imaginando a cena: eu, atolada que só, me embolando com o casaco longo e peludo no meio das pedras, me enrolando toda pra administrar o casaco na hora de fazer xixi no matinho.  Era tempo em que ríamos de tudo, ríamos juntos. No último inverno fui aos Frades, em um dia de frio. Sentada naquelas mesmas pedras onde a gente gostava de lagartear ao sol, o som das nossas risadas me visitou e se misturou às águas que correm sem cogitar olhar para trás. Por um instante, ali, me veio a noção muito clara – que me entristeceu – de que cada fração daquela água que passava diante de mim nunca mais passaria por ali. Nunca mais será a mesma água e nunca mais haverá esse mesmo momento.  Essa água que passou me trazendo  essa clareza instantânea já vai longe, deixou sua marca de vida e esperança no musgo, contribuiu sua ínfima fração para o desgaste da pedra e seguiu adiante, como talvez tudo deva ser… como parece inevitável que seja.

Era bom ter os primos mais velhos, primos irmãos, teus meninos, e ir com eles aos Frades, ao topo da montanha, à Ilha Grande e todas aquelas viagens. Bom ter você, libertária, forte, independente, sempre tão perto e nos incentivando a ir longe, criar asas. Bom ter pais que me permitiram ir com teus meninos àquelas aventuras. Olhando para trás,  vejo quão paradoxais eram esses pais maduros – em atitude e idade –  que não me deixavam, adolescente, ir aos shows e clubes noturnos a que todo mundo ia (“Você não é todo mundo”),  mas me permitiam ir aos acampamentos, montanhas viagens e até clubes noturnos, desde que com teus meninos. O pai, a mãe e você foram criados soltos na roça e o pai dizia que para estar na natureza há que se ter atenção, juízo e respeito. Esses são  elementos com que até hoje vou à natureza. Foram teus meninos que me levaram à natureza, me apresentaram meus primeiros templos. Naquele tempo, era impensável que não estivéssemos sempre assim, juntos. A vida seguiu, muitas águas passaram e sei que não voltarão, mas há um lugar em mim onde ainda é possível escutar nossas risadas ecoando entre as pedras dos Frades, onde ainda somos aqueles que se entendem pelo olhar, que cantam juntos em volta do fogo, que se defendem, se protegem, se cuidam, deitam juntos ao sol e quando a noite chega, dividem barraca e afeto de irmãos.

Sei que não era assim com todos, Bruxa, mas para mim você sempre guardou doçura especial. Saudade de chegar em tua casa e ouvir:
__Guardei pra você.
Então eu abria tua geladeira e encontrava meus potes reservados. Doce de figo, pêssego, mamão verde, laranja da terra, potes e mais potes de geleia de amora e da melhor canjica de todas. Sempre que alguém me diz que não gosta de canjica, desafio: prove a canjica da minha tia. Se não gostar, me convenço de que não gosta mesmo de canjica (porque isso que uns chamam de canjica, uns caroços duros boiando num caldo insoço e sem borogodó, disso eu também não gosto, não). Guardei tua receita, não se preocupe.

Há muitos anos, na nossa primeira grande perda, me vendo chorar tanto, você me disse, me abraçando e tentando de tudo para me consolar: “Se ao menos fosse eu, vocês não sofreriam tanto”. Foi tão verdadeira aquela tua fala, tão cheia de amor… Tantos anos se passaram… Vê? Não adiantaria. Você não conseguiria me poupar da tristeza pela perda de vocês. É claro que há mais aceitação pela tua passagem que pela dela, aquela tão precoce. Mas a tua também é perda, perda grande. Perda dói.

Teus “meninos” vão começar a organizar tuas coisas. Heron disse que vai dividir lenços, pulseiras, brincos, anéis e colares entre as mulheres da família. Vai passar tempo distribuindo aquilo tudo, coitado! Haja Cristo, pra cuidar daquilo tudo! O que pedi a ele e a Wagner foi que separassem para mim um par das tuas agulhas de tricô e uma das bruxinhas da tua coleção, torcendo que me venha uma daquelas que eu te trouxe de alguma viagem.

Ah, minha Bruxa amada.. Quero te guardar como você viveu: cheia de brilho, perua, sempre agarrada à mãe, tua caçula querida. Daqui a um tempo vou conseguir fazer isso sem lágrimas. O domingo foi nublado e chuvoso, dentro e fora de nós, mas estávamos todos lá, juntos, pra te desejar luz na passagem. Nos abraçamos. Os manacás-da-serra estavam lindos, me lembraram os teus. Eles seguirão florescendo. Espero que haja jardins pra onde você está se mudando, espero que seja permitido que tuas mãos sigam plantando beleza. Combinei com a mãe: sábado vamos comprar plantas juntas  e quero encontrar uma muda de brincos de princesa. Vou plantar por você, pra você. Hão de crescer bonitos como aqueles que você tinha pendurados no pé de amora do quintal de Venda Nova. Serão minhas flores para você. Serão minha memória viva de você.