Querido Vincent
Te escrevo enquanto me despeço de teu solo. Em poucos minutos, estarei sobrevoando campos que me parecem telas repletas de tuas cores fortes e vivas. Agora sei que não poderiam ser outras as tuas cores. Logo verei o azul do Mar do Norte, profundo como teus olhos. Talvez tenham vindo das praias dali os grãos de areia amarelos que vi em tuas telas. Elas são tão preciosas hoje – e me dói pensar que não saibas – a ponto de serem examinadas ao microscópio. É essa a dimensão dada à tua arte, hoje: buscam-se evidências de onde terias estado enquanto as criava, de onde estaria observando teus objetos, quanto tempo teria levado produzindo cada uma.
Foi importante vir te encontrar em teu lugar. Consegui sentir-compreender melhor minha conexão com tudo o que se refere a você. Vi teus girassóis e vê-los em teu solo foi diferente de vê-los no meu. Em teu solo, eles estão rodeados por inúmeros canais que refletem luz ora dourada, ora rósea, ora azul (nos canais de teu solo vi também as cores de Monet). Há também imensos moinhos e uma arquitetura única, das mais belas que conheci. Em teu solo, os girassóis são cercados por telas vivas. Não me ressenti da ausência de montanhas que em geral me fazem sentir perto de mim e dos meus. A “planitude” e plenitude do que vi me fizeram sentir junto de você e perto de mim. Vi a vida pulsando energia nos vibrantes girassóis, da mesma forma que entendi a transitoriedade em suas folhas quase caídas. Cores vibrantes, mas um subliminar sentido de claro-escuro, metáfora da vida.
Em sua casa, minha conexão antiga com você finalmente fez sentido. Como você, prefiro os simples, os trabalhadores, os do campo e o próprio campo: seu silêncio, suas cores, sua essência. Como você, tenho afeto especial pelos comedores de batatas que, em meu solo, são talvez comedores de farinha e alguns, nem isso, só comedores de luz. Como você, passo tempo grande contemplando criaturas minúsculas, coloridas e cintilantes em sua beleza infinita, a ponto de por vezes enxergá-las mais que as flores em que pousam. Mas como você, reservo tempo grande às flores e seus detalhes, mesmo as minúsculas. Como você, sempre senti demais e sempre enxerguei detalhes demais. Sempre tive consciência de quão árduo é o fardo de tanto sentir e ver e, como você, muitas vezes desejei sentir menos. Sentir tudo e todos em seus detalhes é se conectar com as camadas profundas e escondidas dos seres e das coisas. Há verdade e detalhes excessivos aí. Sempre achei que os que sentem, vêem e percebem menos têm mais chances para uma forma distraída de felicidade que, imagino, possa existir. Sempre os invejei, os desatentos, os que necessitam menos profundidade. Deve ser bom fazer a viagem de forma mais leve e distraída, sem pensar no sentido das diferentes cadeiras, algumas rígidas, de sisal e madeira; outras estofadas em veludo e mais ricamente adornadas. Entre elas e entre os que nelas se sentam, o abismo da desigualdade. Como você, sempre enxerguei o abismo. Escolhi as cadeiras de sisal e madeira e me alinhei aos que só têm acesso e direito a elas. Acabo de escrever “escolhi” e me dou conta de que essa não é escolha adequada de palavra. Não escolhi. Sinto que cada um de nós vem a este mundo com seu assento marcado e se conecta, em algum momento, com aqueles que têm assentos iguais, em algum sentido. Alguns assentos são rígidos e quem os ocupa carrega responsabilidades. Outros assentos são confortáveis, convidando ao relaxamento e à desatenção. Sim, são desconfortáveis os postos de observação atenta e focada na transformação das formas de viver, de ver, pensar e sentir. E, sim, devem ser reconfortantes os assentos estofados de acomodação, mas ocorre, também, que as transformações nascem do incômodo e alguns de nós não vêm a este mundo para deixá-lo inalterado.
Nos últimos dias, pude passar horas diante do trabalho que você idealizou que não fosse só seu. Há ali, o tempo todo, uma profunda inconformidade, uma necessidade premente de dar foco aos invisíveis, pobres e banais: insetos, camponeses, mobília. Foi importante ver você em seu lugar. “Now I understand/ what you tried to say to me/ how you suffered for your sanity/ how you tried to set them free/They would not listen, they did not know how/Perhaps they’ ‘ll listen now “. Sinto por compartilhar minha impressão, que talvez te doa. Passados mais de cem anos, eles ainda não ouvem, não sentem, não veem. Vários deles passaram desatentos por você, reservando apenas o breve tempo do disparo da câmera e movendo-se rapidamente para o consumo superficial, insensível e irrefletido de mais uma fração de você. Terão inúmeras partes de você para exibir, sem que tenham verdadeiramente levado qualquer parte consigo. Mas há outros e neles você vive. Neles, tua arte, que sempre foi maior que tua própria vida, vive.
Tomei meu tempo sem pressa alguma, porque sinto que merecíamos, finalmente e verdadeiramente, nos conhecer. Vi o relevo nas pinceladas dos redemoinhos que, tempos atrás, me serviram como representações de um período e se transformaram em linhas minhas, registros necessários para que hoje, refeita, eu volte a escrever, volte a te escrever e possa dizer: estou bem. Tua arte me ajudou quando precisei mergulhar em mim e entender que somos todos redemoinhos, uns ao lado dos outros, girando cada um em torno de seu centro, em diferentes sentidos, ora com mais luz, ora mais nublados. Usei tua arte para alimentar minhas palavras e hoje vejo que as palavras que vieram dela foram curativas. De tua arte e das palavras que vieram dela, compreendi que, juntos, compomos uma tela maior na qual cada um de nós, redemoinho girando em torno de seu próprio centro, é pequena parte de um todo que guarda sentido pleno, beleza e sabedoria muito maiores que as individualidades. O quadro maior tem propósito e nele os redemoinhos são todos partes necessárias, preenchedoras de vazios, mas individualmente desimportantes. Há sabedoria inerente ao quadro maior e é essa sabedoria que orienta cada um – que se disponha a ouvi-la em seu íntimo – a ocupar assento no posto que seja seu verdadeiro propósito, seu necessário propósito. Talvez seja preciso viver o redemoinho para desenvolver a maturidade – primeiro da aceitação e depois do contentamento – de viver seu propósito.
Você tinha convicção profunda do seu propósito, convicção que te fazia enfrentar a escassez em nome de vivê-lo: seu propósito, sua verdade, tão estranha aos olhos de outros.
Vi teus inúmeros autorretratos que alguns veem como traços de egocentrismo, esses que foram simplesmente a forma possível de estudo para quem não tinha recursos para modelos vivos. Te vi, com um misto de alegria e tristeza, conquistar finalmente teu primeiro modelo vivo, aquele soldado zuavo um tanto decadente, desalinhado. Bêbado, talvez? Vi teus estudos de cores com a mistura dos fios de lã, acessíveis a quem não podia arcar com as caras tintas para “meros” ensaios. Vi, para além de tua arte, a persistência em tuas verdades, o propósito e a determinação. Guardei essa visão. Cada uma de tuas telas ganhou mais essas camadas de cores, para mim.
Passei tempo longo diante de cada um dos anos que compuseram tua breve vida. Chorei, com 136 anos de atraso, o momento de insanidade que te fez decepar tua própria orelha. Lamentei profundamente que você tenha precisado sentir dor física tão grande, na busca pelo alivio de suas dores emocionais. Lamentei profundamente que um episódio tão triste tenha sido desencadeado pela ruptura com teu grande amigo Gauguin, cujas cores também me são tão caras. Senti quase minha a frustração da tua expectativa de que houvesse pelo menos uma pessoa – uma – capaz de ver e sentir como você. Alguém capaz de compreender tua visão única ou, na ausência de compreensão, ao menos aceitá-la. Lamentei pela perda de todas as tuas esperanças, te levando a ato tão insano. Refleti sobre como pôde tamanha visão e clareza culminar em ato tão desesperado, tão desesperançado. Temo, por vezes, que o preço da sensibilidade excessiva e da clareza sobre a insanidade de tudo e de tantos seja a perda da própria sanidade. Foi assim com você e com muitos outros.
Chorei, com 135 anos de atraso, a bala autoinfligida em teu peito. A música me acompanhou mentalmente em toda a minha visita: “And when no hope was left in sight/ in that starry, starry night/ you took your life as lovers often do/ But I could have told you Vincent/ this world was never meant for/ one as beautiful as you”… Lamentei que você não tenha encontrado o acolhimento de que precisava e que tua solidão tenha se tornado tão imensa a ponto de não suportá-la mais, a ponto de abrir mão da vida e de suas cores.
Mas também vi os jardins do sanatório e as íris, as rosas, borboletas, mariposas e besouros dos dias que antecederam a bala em teu peito. Vi os caminhos que você percorreu em períodos sãos. Tua atenção estava focada na beleza infinita das miudezas invisíveis a olhos desatentos e você tomou para si a tarefa de fazê-los enxergar: há beleza e ela é necessária, é preciso enxergá-la. Te imaginei passeando por jardins em uma dimensão que desconheço, lado a lado com Manoel de Barros. Vejo vocês dois em uma caminhada que prescinde de verbalizações, mas repleta de sentidos compartilhados e atenção mútua e ao simples, ao pequeno. Ele vai colorindo as miudezas com palavras e você mentalmente as escreve com cores. Já conheceu Manoel? Se tiver oportunidade, não hesite. Sinto que vocês dois se compreenderiam mutuamente. Manoel é casa que acolhe. Muitas vezes fui acolhida por ele, a ponto de ter chorado sua morte como a de um parente. Ele preza insetos mais que aviões e dá respeito a coisas e pessoas ditas desimportantes. Vejo muito de você nas linhas de Manoel. Penso que na dimensão de vocês não sejam necessários aviões e cansativas horas de viagem. Sinto que vocês deviam se conhecer. Ele seria capaz de sentir-ver-compreender tua visão única e pôr fim à tua solidão. Manoel te acolheria. Tornem-se amigos. A paz dele lhe traria paz.
Espero que de alguma forma você tenha encontrado acolhimento e paz, que esteja refeito e bem. Sobretudo, espero que lhe seja dado saber da dimensão e importância que ganhou sua arte, depois que você partiu para essa outra dimensão.
As flores, borboletas e besouros que vejo nos registros de teus últimos dias me contam que nem tudo foi angústia, tormenta e desespero naquele período. Havia propósito e beleza e você deixou registro disso. Vi as raízes contorcidas em tua derradeira tela inacabada, trabalhada naquele mesmo dia. Me vieram visões da tinta grossa e ainda fresca sobre a tela, alternada com teu sangue vivo e quente, teus olhos coloridos se nublando, o ruivo de tua barba perdendo cor, as cores esvanecendo naqueles dois dias que se seguiram até que tudo fosse só luz.
Em 1973, teu sobrinho, também Vincent, fundou tua casa e permitiu que te visitassem os que, como eu, contigo se conectam sem nem saber por quê. Nesse mesmo ano, cheguei ao mundo, a quase dez mil quilômetros do local que guarda, vivos, você e sua arte, que afinal são uma coisa só. Algo me diz que tínhamos um encontro marcado desde 1973. Talvez tenhamos marcado esse encontro antes. Senti minha visita como reencontro. Foi bom, belo e profundo ter estado com você. Só então pude descobrir o real propósito de minha visita. Te levo comigo, te levo em mim. Volto com muito mais do que tua arte, que pensava já conhecer. Volto a meu solo cheia de propósitos inspirados por você, por sua insistência nas suas verdades, por sua perseverança nas cores, na simplicidade e na transformação.
Obrigada, Vincent, por tanto.
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