Não tenho tempo ou interesse para onde não haja alma. Não porque ande rápido demais ou faça viagem desinteressada, mas porque, sim, acredito na alma, e acredito nela porque só acredito naquilo que vejo. Porque olho tudo e quase nada há que me desperte, até que seguro o passo e atento ao pequenino ponto que o olho vê, em geral detalhe sutil (alguma gentileza, alguma inesperada generosidade). Naquele ponto há alma e este é ponto que vale enxergar. É quando silencio, no impasse da memória do quanto já ouvi: “Menos alma, menos sentir! Sentir demais é sofrer… não busque sentir o que sente o outro, sentir tantos outros é sentir demais”. Ocorre que, de quem me ouve e ajuda a cuidar da constância e do ritmo de meus passos, ouço: “Não receie imprimir alma a estes passos que são teus e de mais ninguém, que descrevem o teu próprio jeito de caminhar”. Então acredito no caminhar carregado de alma e mantenho cada fibra do meu sentir acordada. Caminho no ritmo do pulsar das batidas em meu peito. É preciso dar valor a um coração com tecido sadio, coração que pulsa, afinal há por aí tantos corações leprosos…

Percebe-se que há lepra em um coração não por suas feridas aparentes, mas pela falta de sensibilidade demonstrada ao calor e ao toque. Corações leprosos são indolores, é certo, mas prefiro, antes, as dores de mil alfinetadas à insensibilidade do tecido inerte que, não sentindo dor, também não sabe o que é viver o êxtase do reverso da dor. Então acolho as dores e tristezas, minhas e alheias, e quando o reverso da dor me visita e avisa que vem passar tempo bom comigo, sinto-o intensamente – o bem-vindo reverso. Talvez, justamente por conhecer e acolher a dor dos demais, vejo que sua alegria também me acolhe, assim como a minha a eles. Corações que sentem criam círculos virtuosos.

Vivo guiada pelo que enxerga o olho que habita meu peito, este que vê com clareza o que as retinas não são capazes de decodificar. É que a retina quer decodificar a luz para o cérebro e mais me interessa a luz que ilumina o coração e prescinde de decodificações. Com este olho, o que enxerga além daquilo que é visível aos olhos, vejo o mundo cheio de gente que anda por aí tomando alegria incessante e bens passageiros por plenitude, mas bem sei que isso não é plenitude (e tampouco é isso felicidade). Plenitude é algo que ainda não sei (embora saiba o que não é) e, bem verdade, nunca conheci quem saiba. Por isso piso em meu caminho guiada pela luz do olho que vê, acolhendo o calor que ela põe em meu peito, para que no momento final, ao olhar para trás, não me falte a certeza que só se tem daquilo que é firmemente sentido, sem precisar passar pelo pensar. Neste momento meu olho há de ver: foi pleno. Então talvez conheça, nesse fragmento infinitesimal de tempo, uma infinita plenitude.

 

Arte: Daniel Martin Diaz.