Hoje percorri o caminho que tantas vezes trilhei, levada por tua mão. Neste tempo novo, em que tantos trocam os pés pelas mãos, aprendemos também a trocar os pés por rodas e a vida passa rápido, apressada, através do vidro fechado. O olho não tem tempo de aprender o detalhe. Contigo era diferente, todo detalhe era grande. O ponto bem feito do bordado e do tricot, a ervilha de cheiro, a avenca, as onze horas e a erva dormideira em que você nos fazia passar a mão e cantar “dorme dorme dormideira…”.
Fui buscando os miolos de pão, que um dia deixei para marcar o caminho de volta. No lugar das casas que a gente namorava, hoje prédios ostentam imponência. Nas casas, os jardins se apresentavam primeiro e convidavam todos a partilhar de sua beleza. A gente ia caminhando e elegendo o mais bonito, era passeio bom. Hoje, as grades dos prédios separam solidão de solidão. Há também, nos novos tempos, você não saberia, muitos espelhos. Parece ser importante olhar para si, ver a si mesmo, o tempo todo. Mas há casas e jardins que resistem e neles, resistimos nós.
Caminhei o caminho completo, atravessei a praça e fui encontrar meu pai em ponto marcado. Cumpádi Melque hoje caminha lento e eu é que o levo pela mão, você também não sabe. Mas não perdeu o humor. Ri de si mesmo e em meio à risada, constata: “Estou feito criança aprendendo a andar, que titica! “. Mas caminha. E ri. Algumas lojas, as mais antigas, preservam a tradição. Às segundas, só vão abrir depois do almoço. As mais novas, não. Sabem que nos tempos novos, tempo, todo tempo, é dinheiro.
Voltamos à praça e tive vontade de entrar na igreja, sentir teu polegar molhado de água benta fazendo cruz em minha testa. Contigo, e em teus rituais, as igrejas faziam sentido para mim. Hoje (você não viveu para ver, que bom), elas guardam caixinhas onde se pode depositar moedas que acendem velas eletrônicas. Todo aquele que tiver moedas tem direito a seu quinhão de luz. Continuo preferindo as que você acendia e que acendo até hoje, com copo d’água do lado, esperando os sinais deixados pela cera derretida.
Ao lado da igreja, mais uma vez te encontro, em meio às bombas de chocolate e mil-folhas de creme com que você me mimou, desde quando eu ainda habitava o ventre daquela que , sem ter saído do teu ventre, continua a ser tua filha. No café com mobília antiga, onde o tempo parece ter parado, te escrevo enquanto meu pai lê seu jornal diário, como fez a cada dia, a vida toda. Agora vamos para casa comer comidinha simples e bem feita, daquelas que você sempre gostou. E levamos você junto, o tempo todo.
Lindo Mari…. senti como se a tivesse vendo… Aquele cabelo branquinho, com aquela bochechinha recolhida num sorriso discreto… e olhos tão cheios de alegria que queria tanto ter mostrado pra meus filhos também… pra que repetisse tudo que fez com você e seus irmãos e deixasse muito amor guardado, por ela, no peito deles, como feixou nos nossos.
Isso é impressionante: o amor não morre.
O tempo passa… e a saudade não quer ir embora! E com a chegada dos pequeninos me vem à cabeça como ficaria emocionada só em vê-los. Enquanto houver alguém que a tenha conhecido ou que a tenha na lembrança, por incentivo de alguém, ela estará viva. O anjinho do cabelo branco!