A vida que lhe era natural era a vivida para dentro de si. Via outros que se arvoravam a estar aqui e acolá, em meio a muitos e muitas – pessoas, estímulos, objetos, sons e tumultos. Achava tudo aquilo demasiado e ao mesmo tempo pouco, vazio, insuficiente. Ainda assim, forçava-se a estar entre os outros e a imitá-los, feito mímico de cara pintada que replica gestos e traços, sem rosto, sem eu, num constante não-ser.
Acostumou-se ao exercício de buscar ser réplica e esforçava-se ao máximo para atingir o que lhe era árduo – ser igual. Só ela sabia quanto esforço envolvido na realização do banal… Mas descobriu-se com talento de atriz. Houve ocasiões várias em que chegou a receber loas e aplausos por suas atuações nos papéis de normal, típica, enquadrada naquele não-ser. Sabia se fingir de boneca de pano, que se dobra sem resistências para que a guardem em caixas tampadas, mas traía-se em sua interpretação de normose. Sem querer, eventualmente atingia alguma excelência nos lugares do não-eu, lugares de não pertencimento, e era posta em destaque nesses lugares, bicho raro em exposição.
Destaque era lugar em que sempre detestou estar. Seu ideal de felicidade era só este: ser igual, indistinta, invisível entre os outros e por ser invisível, pertencer. O vazio está contido em qualquer conjunto – ouviu nas primeiras aulas de teoria dos conjuntos e introspectou – fazia sentido. O lugar do destaque, único, era solitário e, mais que tudo, o que desejava era troca e comunhão. Em meio a outros, sentia-se deslocada e, em destaque, isolada, mais deslocada ainda. O mundo todo, um não-lugar. Convencia-se de que sendo igual haveria troca. Mas os iguais – diferentes dela – lhe eram estranhos. Sentiam menos, conheciam menos, liam menos, se importavam menos, tinham menos gentileza, aprofundavam menos e pareciam felizes assim, buscando nada daquilo que ela buscava, desprovidos de questionamentos e só sendo – vivendo na superfície de tudo e agarrados a aquisições e valores que para ela diziam nada. O que para outros era só ser, para ela era exercício árduo e todo exercício exige esforço. A bailarina – para quem a vê – é só leveza e naturalidade. Só a bailarina sabe quantos de seus músculos foram esgarçados e quantos esparadrapos envolveram seus pés feridos no exercício constante de entregar o que dela se espera: que não haja, em seus gestos e semblante, qualquer menção a esforço. Nos bastidores, não raro, há bailarinas que, exauridas após o espetáculo, guardam-se em caixas como bonecas de pano.
Dia chegou em que teve a revelação: havia outros e era possível enquadrá-la. Fazia parte de uma minoria, os ditos diferentes – mas, entre si, iguais em inúmeros aspectos. Minoria, mas cada vez mais numerosos. Entre os pequenos, eles chegavam mais e mais, obrigando os normais a reconhecer sua existência e talvez aceitá-la. Observados como ratos em laboratórios e classificados por especialistas como superdotados, excepcionais. Apontados pelos ditos normais como retardados, dementes, habitantes do mundo da lua. Hiperfocados, capazes de níveis máximos de concentração e até – alguns – de tocar a iluminação, eram frequentemente apontados pelos ditos normais como desconectados, habitantes de dimensão paralela, E.T.s. Cérebros diferentes, explicaram-lhe os especialistas apontando as cores nos fotogramas de seus neurônios. Diferente era o que não queria ser – nunca quis… Buscava, desde sempre, ser igual, estar contida. Mesmo que para estar contida precisasse se reduzir ao vazio de si.
Precisou empreender esforço em novo exercício: aceitar-se. Descobriu ilhas onde os como ela trocavam impressões e acolhiam-se. Chocou-se ouvindo seus relatos, descrições precisas de si mesma. Como podia ter estado alheia à existência dessas ilhas por tanto tempo? Absorvida que estava em fincar seus pés no continente, jamais se permitira sequer acessar os portos de onde partem embarcações que levam a viagens seguras por essas ilhas, viagens de exploração e autoconhecimento. Tampouco a levaram a essas ilhas os que, outrora, guiaram os barcos em que ela embarcou na esperança de vida nova, lugar novo que trouxesse mais sentido.
Finalmente, havia descoberto as ilhas. Desalento: tanto tempo só, estranha, deslocada. Alento: havia pertencimento, não estava só. Havia outros que pensavam além do pensar e sentiam imenso e ressentiam-se imensamente de indelicadezas, descasos e brutalidades que para os normais eram só gestos normais. Ela, que sempre abraçou e acolheu os outros, precisou aprender a se abraçar e encontrou razão para sua falta de enquadramento, razão para se perdoar por não conseguir introspectar o papel, por não conseguir ser – de fato ser – a personagem que criara para si. Ouviu de outros o que até então só ouvira de seus pais: diferente não era ruim. Diferente, muitas vezes, era especial e podia ser bom. De alguma forma, seus pais sabiam. Principalmente seu pai, habitante do planeta que lhe conferiu os genes do não-pertencimento.
Permitiu-se, enfim, sentar-se à janela contemplando seu mundo – o seu – e decidiu acolher primeiro a si mesma. Seu mundo podia ser diferente do mundo da maioria, mas era seu e havia beleza nele. Não queria mais viver dobrada em caixas tampadas. Máscaras de oxigênio caíram à sua frente e ela ajustaria, primeiro, sua máscara. Depois, trataria de levar oxigênio a outros. De frente para sua janela interior decidiu que se mostraria a outros e lhes abriria caminho para seu mundo – o seu próprio e o deles – e os faria reconhecer: os traços dela eram seus. Também se sentiam assim e lutavam as mesmas lutas, viviam os mesmos desafios. Outros, bem mais cedo que ela, descobririam: há outros, há lugar, há pertencimento. Juntos, Transformariam Desafios em Atenção Humanizada e mútua. Os iguais a ela eram minoria, mas eram muitos e sua existência era real. Não precisavam se desculpar por existir e ser quem eram. O I Ching tantas vezes lhe apontara: não há culpa, é propícia a perseverança (e ela acrescentou: perseverança em si).
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