A Caixa Cultural, no Rio, está em festa. Decidiu abrir suas portas, simultaneamente, para Frida Kahlo, suas amigas surrealistas e Paulo Leminski.
Na exposição das mulheres surrealistas no México, mexicanas ou não, é lindo ver os trajes compostos que Frida gostava de usar, bonito ver Frida e suas cores, doloroso ver Frida e seus abortos, comovente ver Frida e suas lágrimas espessas, inspirador ver Frida e sua força, triste ver o quarto de Frida e todos os seus aparatos ortopédicos. Mas, muito além de tudo isso, é enriquecedor ver o talento de mulheres como Remedios Varo, Kati Horna, Leonora Carrington, María Izquierdo, que eu já admirava, somando-se ao de Cordélia Urueta, Lola Álvarez Bravo, Bridget Tichenor, Rosa Rolanda, Alice Rahon. Há um par de esculturas de Alice Rahon e uma de suas telas, “Balada para Frida Kahlo” – homenagem póstuma à amiga Frida – que me emocionaram especialmente. A tela é riquíssima em detalhes, uma declaração de amor a uma amiga. É lindo ver a trama que permeia toda a exposição: os laços fortes que unem aquelas mulheres, as homenagens trocadas entre si, que fazem cair por terra (e para quem tiver olhos para ver) o mito de que mulheres não constroem amizades verdadeiras umas com as outras.
Um barato, também, ver que as cariocas escolheram seus vestidos mais coloridos, seus brincos mais poderosos, seus colares mais exuberantes para ir ao encontro de Frida e suas amigas. Me arrumei toda para a ocasião e chagando lá, vi logo que a mulherada toda sentia do mesmo jeito: não dá, de jeito nenhum, pra ir basiquinha encontrar Frida.
A gente sai desse mergulho de deslumbramento, toma um cafezinho e uma água pra absorver aquilo tudo, atravessa o hall e vai encontrar o Leminski. Aí mergulha na poesia dele, se emociona ao ver seus manuscritos em guardanapos, chora ao ver a última coluna anunciando sua morte, como se a morte tivesse acontecido hoje, aquela morte precoce em decorrência de transbordamento: do coração para a cabeça, da cabeça para o papel, do papel de volta para o coração, do coração para o copo, do copo para o fígado, do fígado para a luz. Encontro, em meio a um monte de poemas velhos conhecidos, um texto até então desconhecido para mim, escrito em 1986, quando eu ainda era menina e estava nem aí para essa história de sentido, que me faz perceber que não à toa choro, hoje, a distante morte daquele desconhecido que parece me conhecer tão bem:
“Sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência das coisas e os eventos. O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir. Me recuso a viver num mundo sem sentido. Estes ANSEIOS/ENSAIOS são incursões conceituais em busca do sentido. Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação. Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. Tirando isso, não tem sentido.”
Um monte de emoção, até lágrimas. Parece coisa pesada, né? Não. Volto leve, feliz, inspirada. A visita à Caixa é programa imperdível. Como disse o próprio Leminski (com seu humor ácido, em uma crítica em que se rasga de elogios a um show de Caetano): “o último a chegar é fã do Fagner”.
Ah! Já ia esquecendo: o que tem o vídeo do Ryuichi Sakamoto a ver com tudo isso? Tocou no carro, na volta para casa, e me fez pensar que o minimalismo do Sakamoto tocando solo o seu piano tem tudo a ver com os haikais do Leminski. Mundo globalizado, não? E olha que o Leminski nunca saiu do Brasil, quase nunca saiu de Curitiba. A intensidade do Leminski, tudo a ver com a de Frida e das mulheres surrealistas. Eles todos, juntos, e, (nossa! ainda houve isso, tudo num dia só!) o céu deslumbrante do fim de tarde, encheram de cor uma quarta-feira que era para ser só de cinzas.
Imagem: El abrazo de amor del Universo, la Tierra, México, Diego, yo y el señor Xólotl, 1949. Uma das telas de Frida que compõem a exposição.
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