Houve o tempo em que ninguém importante havia ainda partido e o significado de perda me era desconhecido. A primeira delas chegou ao início da idade adulta e permanece, ainda, a maior. Foi transição difícil e pensava, então, que talvez fosse isso tornar-se adulto: aprender a perda. Aquela primeira me arrancou tantas lágrimas que por um bom tempo não fui capaz de chorar por nada. Toda dor era pequena diante daquela e eu, que sempre tive olhos rasos, transbordáveis, achei que minhas lágrimas haviam secado definitivamente. Custei a perder as cascas grossas, insensíveis ao toque, cheias de tecido morto daquela gigantesca ferida. A vida me pôs bandanas, tratou-me com unguentos e o tempo, aquele benevolente senhor, transformou dores em paz e me devolveu a mim mesma. Reconquistei minhas lágrimas, meu sentir.

Passaram-se muitos anos até que viessem outras. Visitou-me, então, a perda do primeiro amigo. Era coisa estranha ter um amigo que morreu. Meus pais os tinham, meus tios também. Eu não. E nem devia! Não estava preparada. Hoje são já alguns os amigos idos e eu não estive preparada para a partida de nenhum deles. Foram todas partidas antecipadas, que desobedeceram às brandas leis do desgaste gradual e lento, que fingem nos preparar para os encontros últimos.

Agora, outras perdas me visitam. Vão-se, um a um, meus heróis. Foram-se mentores e alguns daqueles que eu considerava os maiores escritores vivos, aqueles que formaram meu pensamento, meu conjunto de saberes. Foram-se poetas que me eram queridos como melhores amigos porque me sabiam, em seus versos, melhor que eu a mim mesma. Foram-se artistas visionários que transcenderam o existente e inventaram novas formas – livres, ricas, descomprometidas de regras caducas e que me fizeram, com suas lentes multicoloridas, ver como vejo, como sei ver. Com a perda deles, descubro nova perda: não encontro em mim a capacidade de encontrar novos heróis. Há, certamente, contemporâneos que admiro, mas como fazer com que algum poeta desperte em mim o encantamento do primeiro poema de Drummond? Como redescobrir algum Quintana e perceber seu manancial de ternura, se as camadas de tecido e inocência mortos vão-nos fazendo menos entregues; se aquela cega, descuidada e passional entrega de outros tempos não nos habita mais? Descubro que o tempo, agora mais severo, me rouba a capacidade de ter heróis. Eles se vão e nada ou ninguém voltará a ter o papel que tiveram em minha vida. Ninguém, como eles, me formará para o mundo e sem eles o mundo me parece lugar imensamente mais vazio, embora na maior parte do tempo não me pareça haver possibilidade, em meio à multidão, do isolamento necessário.

Sucedem-se os aniversários de meus tios, de meus pais. Chegam esses aniversários cada vez mais rápido, enquanto seus passos, seus gestos, seu raciocínio tornam-se mais lentos. Inverte-se o ciclo da vida e passo a cuidar de como atravessam as ruas, a esperar para ver se entraram e trancaram o portão, se há alguém no entorno que os ameace. E ainda assim, não há lugar em que haja maior proteção que em seus abraços, não há lugar em que haja mais amor que em suas lágrimas ao abrirem a porta e me verem chegar de surpresa. Se nada há que preencha o vazio da perda de um herói, inevitável me perguntar com quantos vazios e com  quantas lágrimas secas haverei de enterrar a perda destes, que me são raízes. Como vive a planta se extirpada de suas raízes? Talvez precise crer na seiva que corre em suas veias, na capacidade de gerar sementes, na existência de solo fértil. E finalmente entregar-se à tarefa de ser raiz ou adubo: recolher-se para dar sustento e nutrir plantas outras. Ser adubo também deve ser bom, me ensinou, um dia, minha mãe.

__Mariane Branco. 22 de Fevereiro, 2016.

Foto: Chris Aquino.