Las Cuevas de Walichu já haviam me arrebatado. Entre aquele arrebatamento e este de hoje passaram-se quatro anos, mas muito mais se passou.

Um par de meses após o retorno de nossa segunda incursão pela vastidão patagônica, o vírus nos enclausurou, como fez com boa parte do mundo. Era 2020, regressávamos das férias e o ano mal havia de fato começado. Talvez por estarmos tão abastecidos de beleza, mansidão e plenitude, não sofremos tanto com a clausura. A varanda de casa, nossas plantas e os pássaros que as visitavam foram, por um bom tempo, o que tivemos de mais vasto. Isso nos bastou. Em janeiro de 2022 a vida parecia ensaiar retorno ao normal e decidimos ensaiar retorno às planícies, lagunas e trilhas patagônicas. Retomaríamos a vida do ponto em que a havíamos deixado. “A vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”, dizia John, e em janeiro de 2022, o vírus minúsculo finalmente nos atingiu, inviabilizando nossos planos de imensidão. Enquanto todos pareciam estar voltando às suas vidas, as nossas entraram em suspenso. Naqueles primeiros meses tudo o que tínhamos eram dúvidas e incertezas. Conseguiríamos, algum dia, voltar às trilhas, visitar nossos templos a céu aberto? Para enfrentar tudo o que se seguiu, muitas vezes recorri às trilhas que acumulei na memória, quilômetros delas. Quando a exaustão me ameaçava, me lembrava das trilhas e seguia: lá na frente haveria vista ampla; eu sequer me lembraria da exaustão. Chegaria esse dia. Acho que o que me visitava é o que muitos chamam de fé e eu chamo de conexão com o Tao, o tal do todo em que creio. O vírus nos permitiu descobrir questões que precisavam de atenção e cuidados e, ironicamente, temos que ser gratos a ele. Nada é em vão e a Vida, Senhora generosa, guia com seu archote invisível o caminho daqueles que com ela se conectam. O vírus foi o meio que a Vida encontrou de nos conduzir a um caminho de cura para males silenciosos de que, até então, não tínhamos conhecimento. O caminho da cura foi longo, não mais e não menos árduo que os caminhos das mais variadas pessoas. A vida acontece igualmente para todos, enquanto planos outros são feitos. Cabe a cada um a escolha por rechaçar a Vida ou acolhê-la íntegra, Toda, Tao.

O ano é 2024 e finalmente retomamos a vida do ponto em que a havíamos deixado em janeiro de 2020. Talvez a emoção por estar de volta contemplando o Lago Argentino enquanto escrevo estas linhas venha daí. Retorno à tierra del viento fortalecida e com um sentimento de gratidão maior do que sou capaz de descrever. Assim que tomei a estrada na saída do aeroporto de El Calafate revivi tudo, porém mais forte. Estamos aqui novamente, retornamos àquele ponto da estrada! Tivemos a chance de estar aqui novamente. Juntos, vivos, um ano mais vivos (tenho a impressão de que muitos anos mais vivos, muitos anos mais vividos).

A visita às Cuevas, desta vez, foi somente sobre isto: Vida. Os registros das pinturas rupestres milenares me faziam sentir a todo tempo que as questões essenciais já estavam lá há quatro mil anos. Em certo ponto, os símbolos mostram algo que talvez seja a representação de um cemitério. Todas as demais inscrições são baixas, mas aquela, feita a aproximadamente quatro metros de altura, parece querer mostrar a ancestralidade da noção de morte como passaporte para a vida em planos mais elevados. A memória da primeira vez em que estive ali é vívida. Naquela primeira vez, o sol ia baixo e avermelhava as águas azuis do grande lago. O guia fazia conexões entre inscrições rupestres em diferentes continentes. Como haveriam os povos ancestrais se deslocado entre esses pontos? Seria o inconsciente coletivo e compartilhado o meio de transporte? Perguntou ao grupo se imaginávamos o significado de uma das inscrições – mãos invertidas – em uma parte curva e protegida da caverna. Imediatamente me veio a imagem de uma mulher ancestral em posição de cócoras se apoiando nas paredes da cueva, abrigando a si mesma e a vida que trazia à luz do frio extremo. Naquele dia o guia me disse que eu sabia “ler os símbolos” e me lembro, da mesma forma como aconteceu hoje, de não ter feito tentativa de “ler” os símbolos. Eles simplesmente se mostravam, elementos atávicos. Hoje, sem guia, pudemos passar pelos símbolos respeitando nosso próprio tempo. Logo ao lado do local onde há milhares de anos se trazia a vida ao mundo na grande cueva, havia um casal com um bebê de menos de um ano de idade. O sol estava forte e os pais o protegiam na sombra de uma pequena rocha curva. Contemplei aquela cena por alguns momentos, refletindo sobre os grandes círculos no espaço-tempo que nos unem ao passado milenar. Parei junto ao casal e lhes chamei a atenção sobre a beleza única da cena que protagonizavam e seu simbolismo, no local em que estavam. Ofereci bater uma foto. Ficaram emocionados ao ver a imagem na tela do celular, nosso instrumento para registro da vida contemporânea. Lamentei a fragilidade desses nossos registros e pensei que daqui a quatro mil anos, se ainda estivermos por aqui, talvez haja os registros rupestres, mas não estes nossos. Me despedi e segui meu caminho na trilha de símbolos.

Na primeira vez em que pus os pés naquele local, mesmo antes de ver a placa que indica o “enterratorio indigena”, não tive dúvida: pisava em solo sagrado. O solo dos Tehuelche. povo guerreiro que costumava ser enterrado com seus pertences para prosseguir caçando no céu, ciente de que há que se seguir guerreando pela Vida, mesmo no céu. Naquele lugar, a ancestralidade que me visita não é somente minha ancestralidade recente. De alguma forma, o espírito dos Tehuelche se faz vivo em mim e a emoção que me toma não é só minha. Meus olhos veem os símbolos, mas não são meus olhos que os leem. Penso que os vejo com todo o meu corpo, mas percebo: não é meu corpo. Meu espírito os lê, assimila, enxerga, sente, mas meu espírito, nesse momento, é mero canal. A emoção que me visita está em mim mas não me pertence. Os espíritos milenares se fazem presentes e as lágrimas involuntárias e fartas brotam em meus olhos, mas não são só minhas e as sinto ancestrais. Quando uma pessoa abre os canais de sua sensibilidade para o pulsar da Vida, quando a grandeza da Vida inunda um só indivíduo, toda a Vida imensurável, omnipresente e atemporal se faz. Círculos de conexão se fecham, perfeitos, e elos na grande corrente se unem.

Ao pisar mais uma vez o solo sagrado do território Tehuelche, hoje, não imaginava que mais um círculo se fecharia em minha mente. De repente, fez-se luz sobre a importância tamanha de nosso retorno ao Calafate, essa importância sentida mas até então não assimilada, desde que aqui desembarquei ontem e pus novamente os olhos no azul intenso do grande Lago Argentino. A importância deste lugar está na retomada de nossas vidas, do ponto em que as deixamos há quatro anos. Foi muito o que vivemos entre o desembarque de 2020 e o de 2024. A Vida, bondosa Senhora, nos guiou por caminhos árduos, em que precisamos empreender força, resistência, resiliência e esperança. Finalmente, a Vida nos permitiu estar aqui novamente. “El que come calafate, siempre vuelve a El Calafate”. Nas trilhas de hoje, mais uma vez fui colhendo e comendo vários frutos dos arbustos de calafate, pedindo à vida que nos permita regressar. El Calafate, hoje compreendi, marca o ponto em que retomamos a vida de onde a havíamos deixado, com chances renovadas. El Calafate sempre há de ser lugar de retorno, de onde regressaremos com os olhos cheios da beleza. Regressaremos prontos para fazer da beleza acumulada em nossos olhos a herança que deixaremos a um futuro que, hoje sei, haverá.