Temos grandes poetas brasileiros e guardo cá os meus favoritos. É lista pessoal e daqui a pouco descubro que omiti alguém; não peço, então, que concordem com ela. Entre os que preenchem meus dias, Quintana e suas linhas ternas, repletas de humanidade, às vezes de impaciência, até: bondoso, sem ser “bonzinho”. Manoel de Barros e a poesia das pequenas coisas, dos bichos, da terra, da infância. O apreço pela velocidade lenta, aquela que permite vivência e absorção. Leminski e sua poesia sucinta, concreta, cheia de significado em tão poucos versos. Cora e seus tachos de doces e de sabedoria desenvolvida ao calor de um fogão a lenha. Sabedoria profunda, imersa em simplicidade, como tudo o que há de mais sábio nos ensina: se desejamos alcançar alguma réstia de luz, busquemos o essencial. Adélia e sua força de mulher de verdade, que sofre, mas não quebra, pois não é objeto frágil; que segue adiante e ri, verdadeiramente ri, pois sabe que felicidade não é feita só de momentos bons, mas da resultante boa de momentos vários; mulher que pulsa, mulher que nos faz ter orgulho de ser mulheres. Manuel Bandeira e seus desencantos, mas de que servem os desencantos, senão para nos ensinar o que é a dor que atinge o outro, tornando-nos mais sensíveis ao sofrimento alheio? O aprendizado das cicatrizes mantém-nos mais atentos ao tocar a vida do outro, já que não podemos dizer que não tínhamos ideia dos possíveis efeitos. Bandeira usa sua dor e ora enxerga piedosamente o homem-bicho no pátio, ora faz poesia-oração, a partir da simples observação de um rio e do aprendizado que dele extrai. Ferreira Gullar e sua poesia que passeia pelos quintais e varais, adentra a sala e nos senta em uma poltrona, com bichano ronronando no colo. João Cabral de Melo Neto e a resistência, a resiliência, a explosão de vida, mesmo quando partida de uma vida franzina, severina.

Nesse sentido, somos um povo de sorte: há um banquete poético entre os nossos, disponível para nos alimentar o espírito; bastando que tomemos um assento à mesa já posta. Por isso, sempre me surpreende, em meio a tantos enormes talentos, e a tantos outros que aqui omiti, a reverência que desperta em mim a poesia de Drummond – para mim, talvez, o maior entre os nossos. Digo “talvez” porque isto, de poeta ou escritor preferido, tem muito a ver com nossas fases. É que em muitas delas, é Drummond quem me acolhe. Disse ele que seu coração era pequeno. Mas se não era grande o seu, que acomodou tanto sentimento, tanta delicadeza, tanto desejo de um mundo mais gentil, então o de quem mais será? Seu coração era grande, sim, mas não comportava a imensidão de seus sonhos, a imensidão do seu sentir, tão pouco externado em seus gestos contidos. Precisava transbordar. Do coração de Drummond vem a grandeza dos versos: “Fica sempre uma franja de vida/ onde se sentam dois homens”.

Drummond é sinônimo de sentir e refletir. O último dia do ano costuma ser corrido, sobra pouco tempo à reflexão. Até lá, temos tempo. Do enorme e imortal coração de Drummond, meu poema favorito de fim de ano:

Passagem do Ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

 

Foto: Rogério Reis