Gosto de ver Caetano roçando a língua de Camões, que é minha também, e traduzindo meu sentir. Mais que pátria/mátria, quero o mundo, quero o universo e quero interações entre as partículas que se agregam para compô-lo. Quero frátria. Minha língua é minha pátria porque é com minha língua que expresso o que sinto, que expresso amor, único e essencial elemento que dispensa traduções e é capaz de irmanar todos os seres vivos. Não falo, por exemplo, Gatês, e tampouco falam Português meus gatos, mas entre ronrons, abraços e olhos nos olhos, comunicamo-nos com a verdade e a certeza de que poucos humanos, entre si, são capazes. E qual linguagem teríamos a usar entre nós, com qual linguagem construiríamos a relação plena que temos, senão falando e gestuando Amor? Eles, com miados, afagos, ronronadas e amassadinhas; eu, com palavras, carinhos, abraços, beijos e cuidar.

Quando me perguntam quais idiomas falo, sempre sorrio internamente, aquele sorriso que se dá ao responder uma pergunta inócua. Porque a resposta que me pedem diz respeito àqueles idiomas que estudei, mas não acho que o idioma que eu realmente tento falar esteja contido nas respostas que forneço a essas perguntas. Nunca me perguntam o que é que quero comunicar. Sim, porque o idioma em que falo ou escrevo é mera ponte para o conjunto de sentidos que pretendo comunicar e ocorre, também, que meu verdadeiro idioma está muito mais presente naquilo que não falo e não escrevo. Nunca foi registrado por mim em qualquer formulário ou currículo. Há, claro, registros dele – hoje me dou conta – esses registros que vão sendo gravados no documento maior que cada um de nós constrói com seu caminhar sobre os dias; este que faz com que os que nos conhecem possam nos referenciar. É documento latente, imaterial, mas muito mais respaldado que qualquer outro desses que podem ser impressos. Ainda assim, as respostas burocráticas que forneço em formulários parecem satisfazer os inquisidores – inquisidores costumam satisfazer-se com muito pouco, desde que o pouco que se responda seja a resposta que gostariam de ouvir –  e pouca atenção tenho dado a esses registros, pois pouca importância atribuo a eles. Acho triste: parecem contentar-se em saber quantos foram os conjuntos de regras gramaticais ou de simbologias sobre as quais me debrucei, mas não me perguntam sobre o propósito de buscar diferentes línguas. Acho que, no fundo, a cada uma das linguagens que busquei, era, na verdade, isto o que buscava:  me aproximar do outro em seu próprio ambiente, para tentar compreendê-lo e senti-lo melhor, sem precisar de filtros que traduzissem – talvez com distorções – o sentido pretendido em sua comunicação.

Houve tempo em que pretendi ler filósofos em seu idioma original, porque queria suas ideias exatamente como foram gestadas. Esse era o sentido que eu buscava, mas os próprios filósofos já haviam decantado o sentido original, a não ser que tivessem o dom de que pouquíssimos  são dotados, de transformar sentidos seminais em palavras exatas . Não há um conjunto único de palavras que possa ser usado para expressar um dado conjunto de sentidos, mas há aqueles que conseguem encontrar a combinação de palavras que parece ser exata. São raros, estes. Há também o fato de que, ao fazer minhas próprias traduções internas das ideias já filtradas dos pensadores, eu também as maculo, é inevitável. O que absorvo através de palavras já passou por inúmeros filtros, então é preciso ir além das palavras e símbolos, porque, como  escreveu Clarice: “estou atrás do que fica atrás do pensamento”. Clarice sabia traduzir sentidos em palavras e ainda assim tenho enorme curiosidade sobre quais seriam seus sentidos seminais, antes da decantação promovida por ela mesma entre sentir/pensar e registrar palavras.

Tenho buscado alimentar a pluralidade de linguagens em mim, como caminho para encontrar o uníssono, e já tinha visto um caminho inverso a este, mas com o mesmo propósito, falhar: meu pai estudou Esperanto, acreditou na possibilidade de uma só língua que unisse todos os homens. Ironicamente, nunca encontrou com quem pudesse falar Esperanto. Passou a vida sozinho nesse propósito, detentor da linguagem que uniria todos os povos, mas que ninguém sabe falar. Com o tempo, ele também a esqueceu. Talvez ninguém saiba falar Esperanto porque as pessoas não estejam dispostas a esforços adicionais em prol de unidade; ou, talvez, porque o Esperanto seja redundante, como é redundante meu exercício de pluralidade, como são redundantes todos os exercícios que busquem elementos essenciais que deem liga à matéria que forma os seres viventes. Ora, já existe a língua em que todos os seres vivos são capazes de se comunicar, língua que já vem embutida em cada um, ao nascer,  que nos deveria ser natural, na qual deveríamos ser fluentes, pois que é a única capaz de nos conectar. O problema é que haja tão poucos interessados em falar o Amor, em um mundo cada vez mais verborrágico, insensível e superficial.