Entrou sorrateiro, invadiu meu espaço e, sim, me subtraiu coisas. Um computador, um celular, alguns caraminguás. Trabalho não salvo em outros cantos, coleção de imagens bonitas, pasta de textos que servia de backup do backup que falhou.  Os textos me doeram. Cada um teve seu momento seminal e cada momento não volta mais. Os mais importantes, conversas de mim comigo mesma, estão guardados em mim, lugar mais seguro. Talvez não recupere as palavras exatas, mas invento outras, não faz mal. Palavras não hão de me faltar e nada do que me foi levado há de me faltar. O trabalho pode ser refeito, embora me custe tempo, recurso escasso. O computador, provavelmente já vendido por outros caraminguás a um atravessador qualquer, que tratará de passá-lo a uma dessas pessoas honestas que protestam e se indignam contra a desonestidade dos poderosos e acham bem natural que, de vez em quando, tenham a grande sorte de encontrar uma enorme pechincha em mercado duvidoso. Seguem fingindo acreditar em pechinchas milagrosas e sem questionar a fonte da pechincha: problema de quem perdeu, meu irmão. Celular? É objeto de me conectar a pessoas, ao qual não atribuo valor além desse.

Triste mesmo, mais que tudo, é a esperança, a leveza, a fé no homem, que vão sendo, dia a dia, pouco a pouco, subtraídas da gente. E quem dera fosse só o ladrão pobre coitado – a quem um dia, ironicamente, paguei sanduíche – que fizesse isso com nossas crenças…

Já haviam me ensinado e há coisas que custo  a aprender: a culpada sou eu, assim me disseram. São como os pombos, já me disseram: ratos alados. Sei que os pombos são sujos e sei que incomodo as pessoas se dou de comer aos pombos, mas insisto em gostar dos pombos. “Não os alimente, senão voltam! Mande-os a outros cantos!”. Lá, serão enviados a outros cantos e então a outros e sua fome, seu vício e miséria inconvenientes nos serão distantes, quase invisíveis. Quantos cantos terá o mundo? Parece que muitos, mas não suficientes, porque, enxotados aos cantos do mundo, eles continuam voltando, mais e mais. E, ainda, se há tantos vértices na borda do mundo, então, no limite, para que haja infinitos vértices, cantos que acomodem tantos enxotados, é preciso que os vértices do mundo suavizem-se: no limite, para acomodar infinitos vértices, a borda do mundo tem que ser circunferência e dentro da borda, nós todos, sem separações, sem cantos com arestas que nos dividam, nós todos, destinados irremediavelmente ao convívio mútuo, a despeito do que queiram alguns (talvez muitos).

Há as subtrações pequenas e materiais, como a que me fez o ladrãozinho pobre coitado, miserável, que um dia me estendeu a mão pedindo esmola e me sorriu sorriso que fingia inocência. Há as subtrações grandes, as imateriais: estas, bem piores. Hoje me subtraíram, espero que só de coisas, o tempo me dirá. Todos os dias, a meu lado e acima de mim, subtrações. Hoje, algumas mais. Amanhã me renovo, somo mais e faço saldo positivo. Eu ganho. Eles, agentes de subtrações alheias – eles seguem subtraindo. Seguem, mas seguem subtraídos.

 

Imagem: The Islet Of Asperger Type – Ⅵ” 2009 | Oil on Resin | Choi Xooang.