O título é frase extraída do obituário feito por Eliane Brum para seu pai. A frase ganhou ninho em mim, porque conheço essa desconfiança.

Para a comemoração dos 90  anos de meu pai, recebi de minha irmã, que organizava toda a comemoração, uma única incumbência que não podia recusar: escrever contando a vida de nosso pai. Primeiro passei meses tentando fazer aquele texto nascer em mim e ele não vinha… era como rebento que se recusa a vir à luz. E assim permaneceu, um não-rebento encruado, enquanto, a cada vez que tentei escrever, me visitou a tristeza, anúncio do futuro inevitável se aproximando. Houve um dia, porém, em que minhas disposições sobre aquela tarefa amanheceram diferentes. Lembrei nossos risos depois dos almoços de domingo, com as histórias que o pai contava da sua época de solteiro, junto de Azevedo e Maneco. Lembrei dele contando como ele, solteirão convicto, conheceu minha mãe, ao ir fazer visita à professora primária e amigas de escola, suas filhas, que se tornariam sogra e cunhadas depois que a filha temporã da professora anunciou à família: “Vou desencalhar esse coroa!”. Lembrei dele desligado, me deixando passar direto pelo escorrega da pracinha para me esborrachar no chão – sua mente sempre andou concentrada em viagens a lugares outros e herdei sua distração concentrada, então o entendo -, lembrei dele, tão cedo em minha vida, me mostrando os padrões repetidos na natureza: espirais, movimentos perfeitamente orientados. Foi o pai que me ensinou a buscar os padrões que os desatentos não percebem. Havia padrões em toda parte, ele me mostrava. Lembrei dele nos falando, a mim e a meus irmãos, desde sempre, quão cruel é a alma de alguém que aprisiona um pássaro para ouvi-lo cantar só para si, cruel o alguém que se compraz com canto triste. Lembrei dele me acordando cedinho, sempre ele, com o mesmo tom suave diário, e me chamando com esse mesmo tom à noite, desmaiada no sofá, para ir deitar na cama. Lembrei dele depois de cada bom resultado da escola me abraçando forte com um infalível “Êta inteligência pai d’égua!” que sempre me fez dar risada. Lembrei dele montando a bicicleta nova para que eu parasse de tentar usar a de meu irmão, grande demais para mim. Antes dela, tive outra menor, mas não tive a fase das rodinhas. Pulei essa fase como pulei outras, nunca fui muito linear. Mas tive, ao invés das rodinhas, seu apoio até aprender o equilíbrio. Continuei a tê-lo, continuo aprendendo o equilíbrio e olhando para ele e minha mãe para ter exemplos dele – o equilíbrio. Então o texto que não nascia virou texto de celebração, celebração à vida, e aí as palavras vieram à luz em parto natural, sem esforço, sem dor.  Mas um dia a dor virá e acho que não terei palavras suficientes para ela. Talvez só o silêncio alcance seu tamanho.

Comecei este post depois de ler este texto da Eliane Brum, que escreve, com a mais cristalina beleza, aquela que só os sentimentos puros e fortes têm, sobre a celebração de uma vida e, finalmente, a dor. Dor que só pode ser tão grande quando é, também ela, exaltação à vida.

 

Imagem: Desire. Kinga Britschgi.