Fazia tempo que te sonhava, Bonito, então finalmente resolvi fazer o tempo de te realizar. Descobri que, em mim, como em qualquer um, há tempo, mas tempo é lençol freático que corre silencioso por baixo das camadas de nós, é preciso escavar as camadas que o escondem para fazê-lo brotar. Fiz escavação e encontrei o tempo límpido, brilhante e necessário.
De tanto te sonhar, pensava já te conhecer, mas contigo reaprendi, como já havia reaprendido tantas vezes – aprendizado às vezes adormece-, que conhecimento verdadeiro é vivência, te sonhar não bastava, era preciso te viver. Foi só quando caminhei sobre teu solo cintilante das milhões de casquinhas quebradas de caramujos idos, só quando ouvi o canto de tuas aves e sapos e acariciei as cascas de bacuri roídas pelas araras, quando pisei teu solo calcário e me debrucei sobre o penhasco repleto dos ninhos das araras, só quando contemplei os bichos-pau em seu ritual lento de acasalamento e morte, foi que finalmente te vivi, conheci.
Passaria tempo grande, dia inteiro, aprendendo só o que acontece ali, em volta do bacuri, vendo a cotia comer cinco frutinhas e devolver duas ao solo, replantar a vida que lhe deu vida, enquanto as mãos humanas, apenas com o apoio de segundos sobre as margens do rio, destroem vinte anos de trabalho lento e contínuo das águas, derrubam as formações calcárias que a água depositou e que abrigam vida: mãos humanas muito destroem mas pouco replantam, ali ou em qualquer parte. Passaria ali tempo grande, vendo o brotar de tuas nascentes, admirando o brilho azul de tuas águas salobras. Ficaria ali enroscada em tuas entranhas e fazendo ciranda contra o tempo, vivendo anti-horária como vi fazer cada um de teus cipós subequatorianos. Deitaria meu corpo e flutuaria horas a fio sobre a água cheia de magnésio, seria embalada pelo berçário das nascentes do Pantanal e seguiria os cardumes, desde o Paraguai, rio acima, na piracema. Aguardaria, com as centenas de piraputangas, dourados e pacus, o tempo de subir o rio e multiplicar a vida, faria com eles a piracema, que ensina: para ter vida multiplicada é preciso empreender força, subir o rio, “piracemar”. Passaria tempo longo observando o abraço da figueira mata-pau envolvendo o bacuri, pobre bacuri que, envolto no abraço, não se dá conta do trabalho calculista e silencioso da figueira arrancando suas raízes do solo, roubando-o da origem que o nutre, arrancando-o de si mesmo, abraço sufocante e mortal, como é todo abraço que pretende tomar outro corpo só para si, extirpar raízes, roubar o outro de si. Ficaria feliz ao ver que até a figueira mata-pau é capaz de fazer abraço que nutre, abraço simbiótico, desde que encontre o corpo certo: madeira de lei que não abdique de si e de suas próprias raízes. Com corpo assim, a figueira é capaz de criar laço longevo e vivo: laço que une; não nó, que estrangula. Passaria o tempo atravessando tuas grutas submersas, Bonito, me embrenhando em tuas cavidades estreitas, nadaria de novo e de novo o nado apreensivo da travessia de tuas entranhas escuras, só para esquecer qualquer resquício de medo e me desarmar deslumbrada com os raios de luz incidindo em teus poços azuis, luz que alimenta os buracos que abres somente àqueles que ousam conhecer teu avesso, atravessar teus espelhos e te ver ao revés.
Passaria tempo longo assim, me agarrando em ti, mas é preciso fluir, deixar que o tempo passe como passam as águas, deixar-se passar. E eu, que pensava conhecer fluidez e que achava que já tinha conhecido-vivido leveza, ao me deixar levar por tuas águas, rio abaixo, lado a lado com os cardumes cintilantes e sucuris sorrateiras, foi que finalmente senti-vivi. Foi deslizando por tuas águas e visitando teus jardins submersos, contemplando os pacus sorvendo os fungos de tua flora e guardando na memória os botões das flores subaquáticas do Mar de Xaraés que finalmente conheci leveza que, até então, só havia visto no peixe flutuante de Max Ernst, que eu pensava ter descrito tão bem só por ter compreendido. Quis que Ernst tivesse te deslizado, Rio Sucuri, ele que não te conheceu mas deve ter te sonhado, como eu mesma tanto te sonhei, antes de escavar até o tempo de te realizar. O peixe flutuante de Ernst, como os cardumes de piraputangas, sabia que é preciso flutuar, preciso fluir, preciso deixar-se levar pelo rio; fazer, do rio, céu, para levar o rio em si, como hoje levo em mim a leveza aprendida – porque sentida – do Rio Sucuri.
Fotos subaquáticas: Leandro Vouga Pereira
Nossa, Mariane, que texto lindo! Me emocionei aqui lendo com tamanha sensibilidade. Soube expressar bem tudo que passamos e sentimos nessa curta porém tão significante viagem. Parabéns pelo texto, pelo blog! Tudo lindo! E que possamos viver mais experiências como essas.
Também adorei, Bárbara. Que a gente ainda tenha muita estrada a percorrer juntos 😀