“(…) Os pescadores locais me haviam dito que, outrora, por ali ninhavam bandos de flamingos. Fazia tempo, porém, que eles não vinham.
No entanto, os pescadores esperavam ainda a visita daqueles magros anjos do vento. Na tradição daquele lugar, os flamingos são os eternos anunciadores de esperança.
Uma inexplicável angústia me assaltou – e se os pássaros não voltassem mais? E se todos os flamingos de todas as praias tivessem sido tragados por longínquas trevas?
Uma antecipada saudade me concaveou o peito. Não era a simples carência dos seres. Era o definitivo da ausência dos mensageiros dos céus, esses discretos carteiros divinos.
(…) O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.
(…)N’O último voo do flamingo, sentados na berma do desfiladeiro, os personagens fazem da folha em que escreviam um pássaro de papel. E lançam essa fingida ave sobre o último abismo, reinvestindo na palavra o mágico reinício de tudo.

(…) A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos que tento a ilusão de uma costura. É uma escrita que aspira ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de quando em quando, sonhar o voo da asa rubra. É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores da miséria. Mas é aquela que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver.
Lembro, ao fechar, as palavras do feiticeiro Zeca Andorinho: ‘Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós’ “.

-Mia Couto in O último voo do flamingo.