A gente se conheceu quando eu tinha dez e ela, onze. Eu, a menina assustada, chegando de outro colégio, que era bem mais aberto que o novo, onde acabei ficando até a faculdade. No novo, que de novo tinha nada, tudo era rigidez. Não tinha ensaio de maculelê e nem ginástica rítmica da professora Kátia querida. Também não tinha o monte de festas que havia no colégio velho (o que era novo). Dizia-se do novo (o velho), tradicional, que era o melhor colégio da cidade, então para lá meus pais moveram os três filhos. Ao chegar no colégio novo eu custei a me adaptar àquele negócio de decorar definições de planalto e planície em livro de Geografia. De fato, só fui entender o que era aquilo mais tarde, viajando. As definição nada me diziam e eu acabei, um dia, chorando diante da professora e da turma inteira, me achando menor, menos qualificada do que os que já estudavam no melhor colégio desde sempre. Sopros de leveza, ali, só vieram muitos anos mais tarde: da professora de Literatura que me apresentou ao teatro e me fez subir ao palco e até cantar, do outro professor de Português que dava aulas extras de Redação para mim e para a Lu em sua casa, do outro professor de Literatura, que interrompia a leitura dos poemas e dizia, com o olho brilhando: “Mas isso é bonito demais, não?”. Talvez eu os tenha traído todos, ao ir para a faculdade estudar Matemática. Talvez escreva até hoje tentando agradecer a eles pelos sopros de liberdade. Exceto por eles, somente a universidade me devolveria aquilo que eu tinha em mim e que o colégio novo, o arcaico, me tomou a fórceps: a verdade de não dizer que entendia alguma coisa até de fato ter entendido.
Desde aquele início a Lu me acolheu, consolou meu choro e tentou me explicar planalto e planície, e outras definições. Com o tempo eu aceitei: definição era definição, não era para questionar. No colégio velho (o novo), havia festas, fantasias, desfiles e dança. No colégio novo (o velho), solenidades e medalhas. Na minha primeira medalha, fui acusada de fingir incompreensão com meu choro. Aos poucos, fui fingindo compreensão e sendo aceita. Fiz amigos, vários, até, mas a Lu foi a primeira. Passamos os anos intercalando as medalhas e eu sabia que antes de eu chegar, as medalhas eram só dela. Isso, por si, seria motivo suficiente para ela me detestar, mas para isso era preciso que a Lu não fosse a Lu. Os anos passaram assim, ela indo lá pra casa estudar e dizendo que achava bom lá em casa; meu irmão implicando com ela, ela implicando com ele; a gente indo à livraria juntas, comprar livros na conta do pai da Lu, que não morava com ela; a Lu saindo cedo da casa da mãe e indo estudar longe e depois mais longe. Aí a gente se perdeu. Até que há uns anos, a gente se achou de novo. A Lu amando cozinhar, eu também. Ela adorando falar de música e viagem e cinema e política, eu idem. Ela amando um monte de coisas esquisitas de que quase ninguém gosta, exatamente como era no colégio, eu idem, idem. Ela morando em São Paulo, eu no Rio (pois é, nada é perfeito). Mas aí acontece que ela dá plantão em um hospital no Rio e, saindo do plantão exaustivo, ela me manda mensagem se dispondo a ir almoçar comigo em lugar inóspito, só para me ver, com mala e tudo. Eu digo que vou encontrá-la. Ela passa algumas horas me esperando no CCBB e digo a ela que para gente que gosta de comer, como a gente, tem um café que é uma delícia, com comidinhas divinas, pão maravilhoso e música ótima. A gente vai e perde a noção do tempo. Ela me fala do fim do doutorado, das bikes vintage que ela anda montando, que têm nomes (Maristela, Julieta) e parecem saídas dos anos 70. Eu digo que ando querendo aprender alguma coisa nova, totalmente diferente, de repente tocar percussão e frequentar mais cirandas e maracatus, que sempre mexeram comigo. No cardápio, vemos que uma das opções é “Bela da tarde” e não conversamos: “É esse! Somos nós!”. A moça que está servindo ri, concorda e passa o resto do tempo nos servindo: mais pãozinho para as belas da tarde. Cafezinho para as belas da tarde.
O tempo voa, é hora da Lu partir para São Paulo. Eu a deixo, a gente combina de repetir na semana que vem. Volto para casa sabendo que a gente vai repetir, nesta e tantas outras vezes. Volto pensando quanta sorte eu tenho: quantas são as belas que cruzaram a minha vida em uma tarde qualquer e resolveram ficar para a vida toda…
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