Amanhã é teu dia. Meu apego ao 13 não vem de superstição alguma: só do fato de que, se foi um longínquo 13 que nos deu você, então 13 deve ser número bom. Toda vez que teu 13 se aproxima, vou te revivendo e sempre me impressiona a força de tua passagem por aqui: que força, a tua, que te faz, ainda hoje, tão viva em cada um de nós. Dia desses lembrei de quando a mãe me contou do quanto você chorou depois de, tendo me perguntado como eu reagiria à tua partida, te respondi, sei lá por quê, que nem ligaria. A mãe me disse que você caiu em prantos sem que eu visse. Que boba, você: vê, hoje, como “não ligo”?
Hoje achei que falaria muito de você, mas não, nem toquei em seu nome. Falei da vó (a vó sua mãe e não você, vó do coração e de fato). Me dei conta de que para mim e para você, a falta de afeto dela doía mais, porque para nós ela reservava um pouco menos de afeto do que lhe era usual. De mim, dizia que era “menina malcriada e respondona”. Hoje sei que éramos incompatíveis. Autoritários, como ela, sempre detestarão os respondões e respondões nunca tolerarão os autoritários. Ela só se foi depois de você e achei, por um bom tempo, que a detestaria por isso, por ter roubado teu lugar em nossos cuidados, mas descobri que não. Quando ela se foi, descobri em mim afeto que eu não sabia ter por ela. A mãe, que me conhece mais que eu, me disse, na época, que sempre soube que de todos os netos, eu seria a única a sentir sua perda. Era carnaval e a mãe só me contou quando cheguei de viagem, não quis estragar meu carnaval. Chorei e senti não ter podido me despedir dela. Mas estou me desviando – isso sempre acontece em nossas conversas espiraladas. O que queria te contar (e que talvez te ajude a encontrar paz com ela – se é que ainda não encontraram) é que eu finalmente descobri, em mim, alguma admiração por ela. Percebi que as batalhas que ela precisou lutar – e no tempo em que as lutou, eu não posso imaginar quão árduas foram, não vivi nada parecido. Você viveu as suas, mas mulher com tamanha coragem era coisa rara no tempo em que ela assumiu a ruptura. Eu tenho sentido admiração por ela, por isso, e entendido que talvez fosse demais, assumir a posição que ela assumiu na trincheira e ser, além disso, mãe e avó afetuosa. É a primeira vez que consigo admirá-la por algo de dentro – sempre só consegui admirar – talvez a palavra certa seja admitir – sua elegância, sua altivez, sua retidão. Por outro lado, ao não ocupar seu espaço e ao te doar sua filha para que você criasse como tua, ela nos deu presente: você foi melhor mãe e melhor avó do que ela, tão ferida por dentro, jamais poderia ter sido, e chego a ser grata a ela por nos ter dado você, em lugar dela. Talvez a mãe também seja grata por isso, porque sempre se orgulhou da irmã que foi sua mãe, sempre se orgulhou de ter sido sua filha.
Não falei de você hoje – lá eu falo quase sempre das coisas mal-resolvidas e com você foi sempre tudo muito fluido. Não falei lá, mas vim falando de você em minha cabeça, no caminho de volta. Hoje o caminho foi longo e lento e foi nele que essas linhas nasceram. Chovia, dessas chuvas de lavar o céu e inundar as ruas e a chuva que corria em meu rosto não era menor. Vê, eu não ligo.
Dia desses, bateu desejo de comer pão doce e me dei conta de que nunca, em minha casa, eu havia feito pão doce. Não os fazia desde você. Como a vontade que me veio foi dos seus, fiz exatamente como você fazia: pão doce de trança, com frutinhas no meio. Foi gostoso lembrar tuas mãos guiando as minhas, enquanto trançava a massa. Levei para Terê e a mãe adorou, disse que estava, mesmo, parecido com os seus. Continuo cozinhando sempre e há quem diga que eu podia ganhar dinheiro grande com minha comida (ser cozinheira, agora, é cool e paga bem, acredita?). Se eu podia, imagine você, que dinheirama não poderia fazer com sua comida, a melhor de todas… Outra coisa que agora vale dinheiro bom é tricot. Há uns tempos, fiz capas de almofada que ficaram lindas e chiquérrimas, com trança larga no centro, e lembrei de você me ensinando: tece tantos pontos, passa para a agulha de trás, tece outros tantos, cruza. Não esqueci nada. Eu tinha abandonado as agulhas desde aquela blusa azul-hortênsia, a que tinha tranças. Foi para ela que você me ensinou as tranças do tricot. Você não a viu pronta, não me viu concluir o trançado. Bordei perolinhas nos miolos das tranças, ficou bonita. Usei para me despedir de você, no sétimo dia. Depois, nunca mais. Até reencontrá-las para fazer as capas de almofada do outro dia, as agulhas me pesavam. Agora, acho que finalmente reencontrei a leveza delas. E já te falei, né? Tricot está em alta de novo e caríssimo, melhor fazer por conta própria. Frio para usar é que é difícil, só em Terê.
Hoje tomei coragem de te contar sobre o dia da tua despedida – acho que estou fazendo paz com aquele dia, finalmente, e imagino que, em você, também já não deva mais doer tanto. Acho também que, curiosa como é, você deva querer saber como foi, então te conto um pouco. Fabi não foi. Estava chegando da Disney, lembra? Ela sofreu muito por não ter ido, por não ter podido se despedir. O pai, que sempre te teve como irmã, também não foi, nem ele e nem Magno: alguém precisava buscar Fabi no aeroporto. Faríamos almoço para recebê-la, lembra? O almoço não houve, não conseguimos. Nada passava por nossas gargantas naqueles dias. Obedecemos a todas as tuas vontades: não te pusemos flores, para que o aroma das flores não se misturasse a lembranças de morte, do jeitinho que você pedia, quando ainda dizia que “achava que estava fazendo biscoitinhos para a Viagem”. Tocamos as Luzes da Ribalta do Chaplin, como você havia pedido e, com essa, você quase levou metade de nós junto contigo. Foi dureza, viu? Quando nos reencontrar, trate de agradecer a cada um. Foi mole não, atender à sua lista. Contigo aprendi a seguir o Pessoa. De minha parte, “não tenho preferências para quando já não puder ter preferências”. Na próxima oportunidade, se houver, repense, aprenda: já não bastava o susto de ter partido sem aviso prévio (ninguém levava a sério que você andava fazendo biscoitinhos e muito menos para *a* Viagem), ainda precisava nos ter feito quase morrer entalados de tanto choro? Ah, mas isso você tem que saber: o cemitério estava lotado, saía gente pelo ladrão. Todo aquele pessoal, com quem você parava para papear em cada esquina da cidade, foi se despedir de você e foi aí que descobri que cemitério cheio, para quem fica, é menos triste. Então, desde então, passei a ir. Antes não ia, porque não acreditava que quem se foi estivesse ali. Ainda não acredito: vou por quem fica.
Lembra os meninos da funerária, como eram lindos? Era difícil imaginar aqueles meninos lindos, com cara de surfistas, funerários. Pois é, outro dia Fabi me pôs num grupo na internet, lá do pessoal de Terê, e nesse grupo vi foto de um deles: ele. Agora é assim: tá todo mundo na internet. Dei gargalhada lembrando de você passando comigo e ele vindo atrás, pedindo pra me namorar; você dizendo que eu não era pro bico dele; ele dizendo que comigo era sério, pra casar; você fazendo acordo: só se der desconto no meu enterro, e ele: topo, se for pra namorar com ela, faço até de graça. Eu radiante pelo acordo fechado, finalmente, ufa!, e você: Ai, meu Deus… vai casar com o funerário?! E não é que foi a família deles, mesmo, que cuidou de você quando chegou a hora? Eu, boba como sempre para essas coisas de dinheiro, não me lembrei de cobrar o desconto. Naqueles dias, eu não conseguia me lembrar de nada, tudo era só vazio na minha cabeça. Ah, sim! Quer saber da foto recente que vi dele, né? Tá curioooosa, né? Ele agora não é mais bonito, acredita? E virou reacionário, o tempo esbodega com todo mundo. Feio, podia até ser – sempre tive uma queda pelos esquisitos, você sabe -, mas reacionário, não era pra mim mesmo, não, você estava certa, sempre está.
Tenho escrito bastante e lido menos do que costumava ler. Saudade de você me obrigando a levantar do sofá, parar de ler e a ir viver a vida lá fora, onde havia patins, sol, montanha, funerários e outras opções, se eu aprendesse a olhar para o lado certo. Se ficasse em casa, ia ter que espanar o pó dos móveis. Eu ia rápido para a rua e via seu riso enquanto eu cruzava a porta. Ora sim, ora não, o Mengão nos dá alguma alegria e Ricardo não conseguiu fazer Luisinho virar tricolor. Teu neto te é fiel, como teu filho nunca foi. Os primos todos continuam vestindo o manto e os filhos deles também, todos te seguem, mesmo os que não te conheceram. A mãe teve época em que ensaiou uma virada de casaca para o Vasco (teus dois filhos são dois traidores da causa) e eu lembrei a ela que tamanha traição seria a você, mas não tenho certeza de que ela me ouviu… acho que, lá por dentro, ela te traiu sim.
Ah! Tenho uma novidade, mas essa vai te deixar arrasada: o país inteiro descobriu que seu galã, Zé Mayer, parece que é um baita de um escroque. Nem vou te contar os detalhes, porque ia te decepcionar demais. Almir Sater, por outro lado, continua lindo e, por enquanto, ainda não nos decepcionou. A fezinha no bicho, que eu queria fazer para manter sua tradição, não faço porque não sei jogar e essa tradição tua, sinto te dizer, acho que ninguém levou adiante. Se você fizer questão, aprendo, há tempo. Novela boa, não tenho visto. Teve uma com um galã que eu sei que você ia gostar, mas ele se afogou – de verdade – e a novela naufragou.
Saudade de você ligando e perguntando: “Já acabaram as provas? Já posso buscar minhas meninas?”. Acho que umas provas por que andei passando estão acabando, então você bem podia me levar, só por uns dias. Não posso ficar mês inteiro, como costumava. Tenho um monte daquelas coisas, que planejava contigo, ainda por realizar. Várias delas já realizei e Fabi realizou outras tantas; Maricota também: acho que você ia ficar feliz vendo as mulheres que são, hoje, as suas meninas. Mas você sabe disso tudo, né? Sabe sim, sei que sabe.
Junto desta carta, te mando música que me faz sentir passeando contigo pelas ruas nossas. Ouça, você vai gostar.
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