Gostaria de ser forte, como vejo tantos fortes que, diante de toda a monstruosidade, diante de toda sorte de vilanias, diante de toda injustiça, diante de toda falta de senso, não param de lutar. Eu me confesso exausta. Olho ao redor e vejo a desumanidade, vejo os pífios e os perversos laureados, impunes, vejo o amor ameaçando naufragar. As batalhas nas trincheiras do horror, os embates cara a cara com o ódio, com a ignorância que reverbera em ondas grandes, que parecem querer nos engolir, com o fascismo que não tem vergonha de se revelar, com a escolha cotidiana pela mediocridade, todos esses me esgotam, me exaurem as forças, vão me tirando as reservas de esperança. Mas não sei viver sem esperanças, ao mesmo tempo em que não tenho a força dos bravos, embora reconheça seu valor e lhes guarde enorme gratidão, por irem em frente, levando meus anseios em suas bandeiras, quando já estou cansada demais para seguir. Olho ao redor e, perplexa feito bicho assustado, só consigo me perguntar: por quê? para quê? o que estão fazendo? que espécie de monstros são? como impedir sua monstruosidade? É até aí que consigo chegar. Há o momento em que, como quem foi ao fundo d’água e por lá ficou prendendo a respiração por muito tempo, preciso retornar à superfície, voltar a respirar. Preciso repor as forças, voltar-me para algo que me realimente.

Que me perdoem todas as vítimas do horror e das injustiças, afogadas nas profundezas com que um evento tenebroso se sobrepõe a outro, esquecidas na trivialidade com que os jornais que estamparam suas desgraças embalam o lixo do dia seguinte. Que me perdoe a moça covardemente abusada por trinta e três (!) monstros  e que me perdoem todas as vítimas das barbáries que a antecederam e das que a sucederão. Gostaria de fazer mergulho profundo o suficiente a ponto de garantir seu retorno à superfície em meus braços, mas não sou forte bastante para nadar nessa correnteza, não tenho as braçadas firmes e resolutas dos bravos. Chega o momento em que, em meio ao horror, me é necessário um pouco de beleza, de leveza, de fluidez. Confesso, um tanto embaraçada, que me refugio nos grandes escritores, pintores, compositores, poetas. Chega o momento em que não suporto mais ver, ouvir, tomar conhecimento da forma com que avança o retrocesso às trevas. Mas é justamente então que percebo que há, aí também, uma batalha. É na batalha dos que plantam o amor, em sua batalha pela fertilização dos corações que consigo me engajar de forma perene. É aí, então, que acabo pensando que talvez – quem sabe? -, se os corações dos monstros tivessem sido, antes da monstruosidade, ocupados com amor, com beleza, com alegria, tivéssemos menos a prantear, menos a curar. Talvez não fossem monstros e esta não é visão inocente. É, infelizmente, talvez a visão de quem enxerga a monstruosidade em detalhe. Ainda assim, ainda que vejamos o horror, que possamos adotar ações profiláticas para os corações do mundo. Alguns acharão que esta é batalha  para os fracos, mas reconheço que é somente nesta que consigo me engajar sem logo me sentir exausta, é esta a que minhas forças me permitem lutar e penso que talvez não seja de todo em vão. Talvez ela possa nos levar a, plantando mais, prantear menos. Talvez não seja utopia. Outros acreditaram:

“Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.”

__Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘Antologia Poética’

Ilustrações da artista romena Aitch. Há mais corações lindamente ocupados por ela aqui.