Há dois dias, chegou o sofá novo. Há dois dias, Ravel, uma das criaturinhas que compõem o núcleo felino da minha família, me desafia. Mal olhamos para o lado, lá vai ele afiar as garras. Sim, ele tem arranhadores para fazer isso; seu irmão, que é um lorde, faz. Ravel nutre pelos arranhadores algo que nem chega a ser desprezo, já que para desprezar alguma coisa é preciso, antes, considerá-la. Catnip no arranhador para ajudar a atraí-lo? Já usei. Ele lambe o catnip, fica doidão e neca de arranhar. Sim, já cortei as pontas das garras. Também lixei, continuo tentando. Ele, claro, protesta. Macho dominante, quer suas garras bem afiadas. Mas é o protesto mais dócil possível para um felino que sabe do que suas garras são capazes. Protesta sem fazer qualquer menção de usá-las em mim. Em treze anos de vida, nunca fez menção de usá-las em mim e em ninguém. São as mesmas garras que ele recolhe quando vem me cutucar, pedindo comida ou carinho, ou quando vem massagear minha barriga.
Já experimentei, em outros sofás e poltronas, devidamente desmantelados por ele e despachados por mim, sprays que prometem, com seu odor, afastar os felinos. Achei que afastam também os humanos, desisti deles. Mantas por cima? Foram e são várias. Ravel cava uma trincheira por baixo delas e lá vai ele arranhar: tanto melhor, de dentro de uma toquinha. A veterinária, que cuida dele e do irmão há anos, me ensinou: cola fita dupla face no sofá. Quando tentar arranhar, as patas vão grudar e ele vai passar a achar desagradável ir ali. Eu fiz. Ele grudou as patas. Depois de desgrudá-las, investiu algum tempo na análise do estranho fator que promovia o grude. Análise feita, usou seus dentinhos felinos para arrancar, uma a uma, as tiras de fita. Eu, boba, mãe, ri. Admirei sua inteligência.
Agora, com o sofá novo, nossa relação anda bipolar. Num polo, minhas brigas com ele, tentando ensinar que aquele, definitivamente, não é lugar de arranhar. Com este vai ser diferente! No outro polo, ele me obrigando à arte zen de enfiar as alcinhas desfiadas, cada uma, uma a uma, de volta para dentro da trama do tecido. Enquanto faço isso, ele vem me fazer carinho e ronrona, safado sedutor. Está pedindo desculpas, de verdade. E, sim, ele vai fazer de novo, gato vilão. Eu sorrio e há, em meu sorriso, um inconfesso orgulho pela parte dele que não se deixa domesticar.
__por Mariane Branco.
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