Aos dezessete, tive professor de Português que me dizia, repetidas vezes: “Minha filha, muito riso é sinal de pouco siso. Você ri demais”. Mentalmente, eu respondia: “Se para ter siso não posso ter riso, escolho o riso”. Era o professor uma dessas pessoas de semblante taciturno e, por mais que me esforce, não consigo me lembrar daquele homem sorrindo, nem uma vez, sequer. Parecia ser daquelas pessoas que levam tudo muito a sério, inclusive a si mesmas.
Eu gostava de ir à escola e me sentar no fundo da sala, junto dos meus. Dali, ríamos juntos, conversávamos enquanto o professor enchia quadros inteiros, trocávamos letras de músicas, imitávamos a menina linda que era uma porta e entendia nada, a quem o professor de Geometria, vesgo, dedicava atenção toda especial, fazíamos planos para o futuro, ensaiávamos namoros, conversas, amizades eternas e a vida. Dali, do fundo da sala, era possível observar tudo e todos, não havia o que me escapasse. Achava muito pouco ir à escola e ver somente o professor e o quadro, e nunca entendi quem gostasse de se sentar na primeira fila, perdendo todo o resto, a amplidão do que se absorvia lá do fundo. Estudar, de qualquer forma, era e é, até hoje, exercício solitário, coisa que eu fazia em casa, escola era para experiência. Naquele tempo, estudo resumia-se a algumas poucas horas, em cima da hora da prova, o suficiente para garantir boas notas. Com exceção das aulas de Literatura e História, que prendiam minha atenção do início ao fim, havia os livros e eu achava, talvez sem saber, desperdício de tempo perder horas de convívio ouvindo o que de qualquer forma encontraria nos livros, por conta própria e mais profundamente. Despertavam minha atenção as tiradas do professor de Biologia, que ao ver a menina porta confundir trompas de Eustáquio com trompas de Falópio, perguntava, assombrado: “Minha filha, o que é que andaram fazendo com seu ouvido?!”. Eu gargalhava alto e a menina me olhava feio. Hoje o professor de Biologia de humor cínico seria processado e eu, acusada de ausência de sororidade. Imagino que as aulas não devam mais ser tão divertias em tempos politicamente corretos.
O professor de Português, com suas aulas perfeitas e burocráticas, não prendia minha atenção e não conseguia perdoar minha desatenção. Então, orgulhoso que era de suas aulas impecáveis, me perseguia. Tudo começou no início do ano. Em uma de suas primeiras aulas, o sinal para o intervalo tocou e fechei meu fichário. Ele me olhou de relance, voltou-se ´para o quadro e, de costas para a turma e especialmente para mim, em sinal de claro desprezo, informou que não havia terminado, mas quem estivesse com pressa poderia se retirar. Gostei daquilo, já tinham me dito que no terceiro ano teríamos mais liberdade. Eu estava com pressa, tinha fome, como sempre, então me retirei. Achei que ele verdadeiramente oferecia a possibilidade de escolhermos deixar a aula, ingênua! Ao me retirar, involuntariamente liderei um levante, vários outros me seguiram. O professor taciturno passou o ano me perseguindo por aquele ato de rebeldia involuntária. Aquilo me era estranho, eu costumava ser querida pelos outros professores, mas a ele, tudo em mim incomodava: meu riso, minha conversa, minha desatenção. O professor de Literatura me encontrava, expulsa da aula de Português, e dizia: “Mas fulano é muito severo com você, não entendo!”. Eu ficava ali conversando com ele, meu professor sonhador e adorável, aquele que vivia os textos e poemas, aquele que analisava a poesia de Caetano e Chico e nos fazia senti-la. Aquele que me fez amar Drummond e Quintana. Chegava a ficar feliz por estar exilada da aula maçante e cheia de regras rígidas de Português, onde o riso era proibido. Então eu ia para casa e estudava Análise Sintática com empenho que não dedicava a qualquer outra disciplina. O sujeito podia ser oculto, indeterminado ou inexistente; o complemento, verbal ou nominal: adjuntos, adnominais ou adverbiais. Eu acertava todos, matava no peito as armadilhas sintáticas do sisudo. Dez, do início ao fim do ano. O professor de maus bofes me olhava com desprazer ao entregar minhas notas, mas era justo, não me roubava pontos. Eu, internamente, ria. Cada dez era uma gargalhada alta na cara daquele que queria me roubar o riso e trocá-lo por siso.
Ao final daquele ano, prestei vestibular e fui aprovada nas duas universidades em que concorria a vagas: em uma, para Engenharia e na outra, onde fiz meu caminho, para algum dos vários cursos do Instituto de Matemática. Ironicamente, minha guerra pessoal com o professor foi determinante para minha aprovação no vestibular. Português tinha peso grande e tive nota alta, acabou me garantindo o ingresso na universidade que viria a se tornar minha segunda casa, onde hoje sou professora. A nota de Português englobava Literatura e é interessante, hoje, perceber que foi a ação combinada dos dois professores, o severo e o amoroso, o fator determinante para meu sucesso no vestibular. Ao longo dos anos, isso se repetiria. As pessoas que mais me fizeram evoluir foram, igualmente, as que mais me apoiaram e as que menos acreditaram em mim. As primeiras me fizeram evoluir por amor e gratidão. As últimas, por desaforo, mesmo. Na Universidade, confirmei minha predileção pelo estudo por conta própria e os livros foram meus maiores mestres. Tudo o que aprendi de verdade na vida, aprendi em horas solitárias, junto aos livros, esses mestres atemporais. Houve, é claro, um par de professores que souberam ser mestres; estes, insubstituíveis e determinantes. Um deles, organizadíssimo, rígido mas amoroso. O outro, caótico e impaciente, mas brilhante. Este último segue sendo mestre até o dia de hoje.
Passaram-se anos e continuo a ver várias pessoas levando tudo e todos muito a sério, levando a sério a si mesmas, trocando riso por siso. De fato, confundindo seriedade com um pacote que envolve falta de alegria, olhar nublado e semblante taciturno. Nunca achei que esse fosse preço necessário para realizar coisas sérias e se for, é preço alto demais, me recuso a pagar.
Daqui a um par de dias faço aniversário, é momento em que costumo avaliar onde estou e é aqui que me encontro: não sou mais a menina sonhadora e ingênua que era aos dezessete anos (seria retardada se fosse), mas tenho cá meus sonhos e alguns ideais de que não abro mão; continuo gostando de ler deitada no tapete da sala e de aprender sozinha, guiada pelos livros; tenho o mesmo prazer no convívio com as gentes, as mais variadas possíveis, sou bicho gregário e social e é por isso que preciso de momentos solitários, para estar inteira quando estou em meio às gentes; ainda sinto muita fome, de comida e de vida; continuo levando o riso a sério, escolhendo o que me põe brilho nos olhos, tentando não me levar muito a sério. Sigo escolhendo ver a vida de lá do fundo da sala, onde a vista é ampla e se aprende por observação, mas principalmente por troca e convívio com outros. Acho que não me tornei sisuda, continuo preferindo riso ao siso. Espero manter minha escolha até o fim.
Mariane, vc tem noção do quanto eu adoro os seus textos?
Muito bom !
Especialmente, porque me lembro dos personagens e acompanhei a trama em tempo real !
: )