Todo indivíduo, em toda parte, pensa que é e quer ser único, mas vida vai, vida vem e acabamos todos, um dia – quase todo dia -, caindo em um e outro clichê. Outro dia vi, num vídeo, um gato que conversava e noutro, um outro que cutucava pedindo carinho e comida, iguais aos que acho únicos e que chamo de meus (mas bem sei que não são, pois os gatos já nascem donos de si mesmos). Pensei: danou-se! Se gatos, que são gatos, são todos clichês, como nos livraremos dos clichês; nós, tão menos elegantes, tão menos nobres, tão menos sutis?!
Li um dia e de novo noutro e em outros mais, nos versos vários de Drummond, todos os meus planos futuros, ideais de esperança e reminiscências de um passado que não vivi, mas senti igual, vivendo outra vida, em outra época, outro lugar: clichê; volto recorrentemente ao que já li, buscando sempre o mesmo: clichê; sonhei com Quintana os sonhos de amor romântico e vi nele minha mesma falta de paciência e rabugice disfarçadas de serenidade e bom humor: clichês; no Vinícius, encontrei o êxtase do encontro e a luz que o encontro traz para os olhos meus e teus: clichê; no Bandeira, minha perplexidade com o homem reduzido a bicho no pátio: clichê; no Manoel, a simplicidade dos bichos rasteiros, dos quintais e do barro: clichê; no Whitman, a epifania da conexão com o todo: clichê; em cada música de amor e até nas mais cafonas, tudo o que senti ao me apaixonar: clichê (e se há coisa que lança cada um ao mais absoluto clichê, é o tal do amor romântico e mais que ele, seu fim: o desenrolar de todas as separações, clichê). Nas entrelinhas de Clarice, reconheci quase tudo o que penso, sinto e sou e quando quero me explicar mas não consigo, recorro a ela e lá estou: clichê. Mesmo quando penso que me desdobro, os desdobramentos do Pessoa me mostram: rascunho mal-acabado de clichê. Vi, na poesia do Pessoa quando Caeiro, a mesma filosofia sobre vida, morte e metafísica que um dia ousei filosofar sem saber usar palavras tão certas: clichê; no Pessoa quando Ricardo Reis – e muito antes dele, em Horácio -, a aflição com a efemeridade do momento que tanto tento agarrar: clichê; no Pessoa Álvaro de Campos, vi em linha reta a confissão de derrotas inconfessas e pensei que talvez esteja aí, nas derrotas inconfessas, o ápice do clichê em cada um de nós.
Gatos disfarçam seus tombos com lambidas no dorso simuladas de elegante distração. Mesmo eles, que caminham com tanto cuidado para derrubar nada, com atenção para evitar danos ruidosos que os constrangem, apelam para o clichê do disfarce. Nós, reles humanos desprovidos de tamanha sutileza e elegância, disfarçamos tombos com aquisições, tranqueiras, promoções, carros e casas grandes, festas, riso em meio a multidões, conquistas e falsas vitórias que despertam olhares alheios mas não trazem, ao fundo de nós, sentimento de vitória pessoal – aquela de fato desejada e que, para cada um, é única, mas que no fundo é a mesma para tantos de nós…
Ah… se nem os gatos conseguem, com toda a sua elegante distinção, como poderíamos escapar, nós, tão brutos, tão corriqueiros, tão desastrados, ao vulgar embaraço dos tombos e de seus disfarces, tão clichês?
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