_ Vem, vó, me faz trança e no meio da trança, entranha um bocado do carinho nascido de teus dedos versados em delicadezas. Me fala as palavras que põem unguento na ferida que dói.
_ Ah, filha… não digo que a pessoa certa não vá te ferir. Eventualmente, vai… até a pessoa certa, eventualmente. Já aprendeste há algum tempo: pessoa que te fere de início e deliberadamente, mesmo quando podia escolher te poupar, essa não há de ser certa, deve ser cheia de feridas por dentro e por isso lhe é tão natural ferir (cada um só pode tirar de si o que leva por dentro). As feridas feitas pela pessoa certa hão de ser raras e involuntárias. Mas note bem: mesmo para estas, involuntárias, há limite, e o que determina o limite não é necessariamente quantidade, mas a profundidade das cicatrizes. Não permitas a ninguém encher tua alma de chagas, não permitas que as feridas te sejam naturais; lembra: quem se enche de feridas por dentro passa a achar natural ferir. Crava o limite.
_ Qual é o limite, vó? Como aprendo o limite?
_ Dignidade, filha. O limite é a dignidade.
_ Só dignidade?
_ E amor-próprio. Esses são os materiais com que tu ergues a cerca do terreno onde cultivarás o que importa.
_ O quê?
_ Tua felicidade, ora! Te criamos menina feliz e é isso o que esperamos, que sejas mulher feliz. Foi em ti que plantamos sementes de felicidade. Cabe, então, a ti, e a ninguém mais, cuidar que as sementes se espalhem, primeiro por dentro de ti mesma e depois por fora, levadas pelo vento. Foi a ti que confiamos as sementes, não temos expectativas de que outros as reguem, mas tu, sim.
_ Fazer com que as sementes prossigam e gerem outras às vezes é difícil, vó. Cuidar ininterruptamente das sementes é árduo.
_ Aprende com o cabelo, filha. Em meio ao emaranhado das tranças, o cabelo prossegue, não para nunca e mesmo que não te dês conta dele, cresce. Um dia te espantas ao perceber o quanto ele cresceu ali mesmo, preso no emaranhado. Aprende com o cabelo: prossegue, cresce.
_ Escova mais, vó. Trança de novo, destrança, escova, retrança… me canta um canto bonito, me dá tua voz que embala e faz sonhar que o mundo todo é ninho, que o mundo todo é teu colo quente.

 

Arte: Dan May.

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Para minha avó Olívia, que tinha cabelos da cor do fogo e um coração caloroso e bom.