Hoje não conversamos. Quando chegamos, na hora única em que nos é permitido te ver, você dormia profundamente. Eu já achava que seria assim e pensei estar preparada, mas ainda assim, cá estou… Ontem foi diferente, teus olhos estavam vivos, esses olhos cinzas, de um quase azul, que nenhum de nós herdou. Ontem tua cabeça estava viva – te fiz perguntas várias para testar a presença da vida em tua cabeça – e como fui feliz te ouvindo fazer sentido!

Os dias têm sido assim, um por vez, um bom, vários nem tanto. A médica nos disse que você chorou muito, hoje pela manhã. Te faz mal estar ali, só, naquele lugar cercado de bipes e cortinas azuis e aparelhos e fios e cateteres que te levam as drogas necessárias. Ontem, apesar de tudo isso, você estava contente, achou que o cabelo da mãe estava bonito e disse, a mim e à mãe, depois de uma daquelas tuas pausas longas, de olhar profundo, que nossa vida está indo muito bem. Como te admirei, meu pai! Pedi à vida, naquele instante: de tudo o que há, que eu tenha em mim uma parte da resiliência de meu velho pai. Quando cheguei, ontem, você me olhou e me saudou, com aquele teu sorriso que agora me traz lágrimas de saudade antecipada: “Ah, minha querida!”, me chamou por meu nome. Pensei nos amigos que já perderam seus pais, tão mais novos, pensei naqueles que convivem com a demência, com a dureza de não mais serem reconhecidos pelos que lhes deram a vida, pensei em meu amigo que vê a filha jovem tendo o cérebro escrutinado por cirurgias experimentais. Concordei com você: nossa vida está indo muito bem.

Ando assim, com essa tristeza branda de quem compreende o tempo e a finitude daquilo que, perecível, precisa findar, mas também certa da perenidade daquilo que, em casa, com você, com a mãe, aprendemos a acreditar imortal. Ando me surpreendendo com a serenidade com que atravesso estes dias. Não tenho mais o desespero de outros tempos, diante da possibilidade de te ver partir. Não te amo menos, ao contrário! O amor mais uma vez me ensina. É o amor, grande como eu não sabia existir, que me dá a força para soltar as amarras que te prendem a mim, a nós, e te libertar, se for isso o necessário para que você fique bem. Tenho andado muito certa da existência real dessa antimatéria etérea que guarda nossa individualidade e nos transporta entre mundos, entre vidas, essa matéria invisível a tantos, a mesma de que nós, em casa, não temos o direito de duvidar, tantas são as páginas que você nos deixa, manuscritas, datilografadas, teus registros matutinos de servidão à vida que vai além do material e visível. Ah, meu pai, teu coração grande e bom anda engasgando, ele te trai. Todos falam de tua pele, com tão poucas rugas, de tua constituição ainda hoje musculosa, mas teu coração sabe quantas estradas já percorreu. Ele mostra os sinais do cansaço dos teus mais de noventa anos de estrada.

Hoje, finalmente, me chegam abundantes as lágrimas que não me têm vindo e reconheço que eu precisava delas. São abundantes, mas não há desespero nelas. São serenas, como serenos têm sido os dias de nós todos que te amamos. Cheguei a me perguntar se ando árida, porque as palavras também não me vinham, então me sentei aqui e me obriguei a buscá-las. São as palavras, sempre, que guardam a chave do que me tranca. As palavras, neste momento, vão à frente de mim, como que fazendo ciranda ao redor das comportas que, abertas, me deixam desaguar e fluir. A mãe vem, me faz cafuné e pede que eu ponha gratidão em minhas lágrimas. Nem todos podem chorar, com amor, a despedida de um pai, ela me diz, ela sabe. Fomos – somos, ela corrige – uma família feliz e isso é tão mais do que tantos têm! Concordo com a mãe, agradeço.

Amanhã é outro dia e talvez possamos, de novo, bater um papinho e cantar juntos, como cantamos ontem. Aguardo a hora de estar contigo. Vou dormir, tentar sonhar sonho bom como o que você me contou ontem. Amanhã é outro dia e tudo será novo, de novo, tudo será como deve ser, como sempre será, a despeito de todos e cada um de nós. Amanhã a vida prossegue. Não sei se aqui ou além, lá onde não sei. Só sei que tua vida há de viver. Se não além, em cada um de nós.

Imagem: Desire. Kinga Britschgi.