A moça, que sempre gostou de estar perto das gentes que formam seu povo e pensava conhecê-las, finalmente viu realidade dura a ponto de fazê-la sentir estrangeira vinda de terra distante, em meio à sua própria gente, em meio à sua própria terra. Sentiu-se gringa, a começar pela pele alva, enquanto visitava os quintais das casas das gentes moreno-vermelhas, de cabelos escuros escorridos e olhos puxados, e os outros quintais das gentes cor de ébano, com pele que reluzia ao sol. Em comum a essas diferentes gentes de peles distintas da sua, a miséria, a ausência de um tudo, a começar pelos dentes. A alguns deles faltava, com os dentes, o sorriso. Pareciam há muito ter esquecido como sorrir. Às crianças, não. Nelas, os sorrisos eram abundantes, na boca e nos olhos.

A estrangeira  visitou os quintais das gentes que, possuindo nada, desprovidas de dentes, sorrisos e de tudo o mais, eram chamadas posseiras. Nos quintais dessas gentes, a moça estrangeira em sua própria terra viu os grandes tambores que recolhem a água das chuvas. As gentes lhe explicaram que a água dos homens é cara, então  é preciso aceitar os presentes que o céu envia. A moça pensou que a água dos homens também foi, um dia, água dos céus, mas alguns homens se apossaram das águas, posseiros. A estrangeira, a princípio, achou muito ecológico aquilo de juntar água das chuvas, até que as gentes menos estrangeiras naquele lugar lhe mostraram as minúsculas larvas rebolando felizes na água com que o céu presenteara os tambores espalhados pelos quintais. As gentes donas dos tambores não costumam atentar às minúsculas larvas e com elas desenvolvem relação de intimidade. A estrangeira pensou que, não bastassem as promessas de dádivas e abundância, seguidas pelas traições  dos homens  que se reuniam em torno de seus conluios, em outro ponto no centro daquele vasto país, visando somente ao centro de seus umbigos; não bastassem aqueles horríveis homens,  também os céus, com suas promessas de abundância e dádiva, acabavam – ainda que involuntariamente – por trair os miseráveis. Os céus fazem jorrar a água, a água enche os tambores, banha os invisíveis ovos e pop, pop, pop, centenas e milhares de pops: o ovo eclode para a vida, vira larva, que vira pupa, que vira mosquito, que pica as gentes e no meio das gentes suga o vírus e pica outras gentes e injeta o vírus, que  vira doença, que  enfim vira morte da criança que outro dia mesmo brincava sob a chuva que outro dia mesmo era só promessa de abundância, presente e dádiva dos céus.

A estrangeira visitou os quintais das outras gentes, que em meio ao tanto nada que recebem das gentes que se reúnem em torno dos centros de seus  umbigos, resolvem arranjar forma de preenchimento do nada: coletam os lixos, as garrafas, as caixas, os ferros, as tranqueiras sem uso  e tudo o mais que as outras gentes acumulam sem parar e vão deixando de lado, para abrir espaço para acumular mais e tentar, em vão, preencher seus vazios. As gentes que acumulam suas tralhas de alto custo são chamadas consumidoras, têm nome e trato pomposo. O velho que acumula as tralhas deixadas para trás por essas gentes é chamado, pelas gentes afeitas ao contato com as gentes e sensíveis à sua desgraça, acumulador, mas pelos vizinhos e gentes menos afeitas ao contato com as gentes, é chamado de velho doido. A moça, alva e estrangeira em sua própria terra, a princípio  acha muito ecológico aquilo de o velho juntar as tranqueiras que foram deixadas para trás pelos acumuladores de nome pomposo… até que as gentes menos estrangeiras naquele lugar lhe mostram que é vazio grande  demais que o velho tem a preencher,  o velho que mal se aguenta em pé, com sua boca vazia de dentes e de sorrisos, com seus olhos vazios, e o quintal do velho é todo preenchido por desordem e caos, entulhado das tranqueiras que pertenceram aos acumuladores de nome e trato pomposo. O velho, vazio por dentro, preenchido do tanto nada que a vida lhe deu e do tudo que a vida lhe tirou,  acumula, acumula, acumula e nada que coloca em seu quintal é capaz de dar preenchimento ao vazio que traz em si. Vive quase sozinho, o velho: fazem-lhe companhia as centenas, milhares de ovos que habitam as tranqueiras e na chuva eclodem, pop, pop, pop, e viram larvas, que viram pupas, que viram mosquitos e um dos mosquitos suga o vírus e  pica a criança, que ontem brincava na chuva e tinha medo do velho doido, que um dia também foi menino e dançou na chuva e acreditou que os céus podiam lhe banhar de bênçãos. Difícil não acreditar em bênçãos, olhando a beleza do céu daquele lugar que abriga tanta riqueza. Difícil acreditar que é o mesmo céu que rega as fossas e os tambores nos quintais e acaba por alimentar ovos que eclodem em  maldição. Difícil não perder o sorriso e, por fim, a sanidade, diante de tamanha traição.