Fosse um dia como outro qualquer, um dia normal, eu estaria guiando meu carro, sozinha, no caminho quotidiano para o trabalho. Escolheria a trilha sonora para dar o tom do meu dia e me fazer abstrair as motos insanas que insistem em usar as faixas brancas como corredores exclusivos, desviando das deselegâncias várias dos motoristas ao redor que, sob o anonimato do caos urbano e por trás de seus insulfilms, sentem-se desobrigados de qualquer gentileza. Motoristas no caos do Rio parecem hordas de Patetas enfurecidos, aproveitam o anonimato para providenciar a faxina nasal que deveriam ter feito na privacidade de seus banheiros; estão lá, vários deles, dentro de seus carros enormes, muito maiores que o necessário, sentindo-se poderosos e melhores que todos, buscando atingir o cérebro com as pontas de seus indicadores enfiadas nas narinas. Exceto pela música que me salva e me coloca em um mundo paralelo a esse, fosse um dia normal e seria isso o que eu veria no início do meu dia. Hoje, entretanto, o dia começou anormal e eu tomei o ônibus para o trabalho. Já dentro do ônibus é que me dei conta de que havia esquecido o celular e, por um momento, fiquei meio sem chão – nada de trilha sonora para me salvar e dar o tom do meu dia. Àquela hora, a linha vai bem cheia, repleta de universitários a caminho de aprender a vida que, talvez, um dia, os transforme, também eles, em Patetas enfurecidos. Hoje, ainda são só universitários e, na ausência da música que me salva, deixo que meus olhos passeiem por eles. Sentado do outro lado do corredor, o rapaz, esguio, pálido e de óculos, lê. Sou traça devoradora de livros e fuxiqueira, sempre quero saber quais são as páginas que ocupam as mãos dos leitores ocasionais que encontro (triste: atualmente vejo muitos celulares nas mãos das gentes, ao invés de livros). Não sossego enquanto não consigo ver a capa do volume que traz o rapaz tão absorto. A princípio, consigo ver que ele marca as páginas com a nota de compra da Saraiva – imagino que tenha iniciado a leitura assim que o livro – comprado pela internet, pelo formato da nota – chegou, estava ansioso para ler este e quis começar logo, não se deu ao trabalho de escolher marcador (para mim, o marcador é um detalhe importante – há alguns cheios de design equivocado e que machucam as páginas). Ele continua sua leitura ávida e em um dado momento, ao virar a página, move o livro de forma que consigo, finalmente, ver a capa. É o Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, e ver aquele rapaz magrelo e narigudo, com talvez uns dezenove anos, folheando o Saramago, me enche de uma alegria inesperada: Saramago estará vivo na geração do rapaz, o rapaz garantirá sua posteridade. Ele interrompe a leitura apenas para acomodar em seu colo as mochilas e livros dos passageiros que vão em pé e confirma minha crença: a leitura que é, de fato, sentida e absorvida, abre mentes e corações. Nenhuma das moças parece dar qualquer atenção ao rapaz, nem sequer o notam. Nesta idade, moças ainda não dão o devido valor à sensibilidade e à gentileza, essa matéria de que são feitos os homens raros.

Deixo o rapaz em sua leitura e observo a moça que se sentou ao lado da porta de acesso de cadeirantes, de costas para a frente do ônibus e de frente para mim. Tudo naquela moça é conservadorismo. As calças são jeans, mas daqueles jeans que nunca passaram por lavagem com alvejantes. Diferente de mim que, em sua idade, puía meus jeans com pedras e os tascava na máquina de lavar com um monte de água sanitária, se achava que ainda não estavam surrados o bastante, ela gosta de jeans impecavelmente escuros e sem máculas. Assustam-me suas sandálias: são pretas e sóbrias, com salto ortopédico e uma correntinha dourada como enfeite, no peito do pé. Se eu olhasse apenas para seus pés e ignorasse a ausência de varizes, diria que eram pés de uma senhora de setenta anos – é nestes que costumo ver esse tipo de sandália. Fico feliz quando vejo gente que usa a juventude para desobedecer aos padrões – juventude é desafio de padrões vigentes – e me entristece ver moças jovens que se vestem como velhas. Aquelas que assaltam os armários das mães e das avós em busca das bolsas caríssimas (e, na minha opinião, horrorosas), cheias de carimbos e medalhas ostentando a marca que devia ser símbolo de exclusividade mas que transforma todas em macacas iguais às outras, sempre me entristecem – no que terão se transformado essas moças, quando chegarem aos cinquenta, se a vida já promove tantas mudanças até mesmo naquelas que, como eu, usavam um tênis de cada cor, inventavam as próprias roupas esquisitas e continuam a gostar de calças surradas? Na mochila da moça do ônibus, há colorido vivo, que a salva da velhice precoce e denuncia alguma vontade de transgressão. As unhas dos pés parecem nunca ter visto manicure, as das mãos trazem base incolor e o rosto, lavado, sem vestígio qualquer de maquiagem, mas é chegando ao rosto que me surpreendo: a moça tem traços belíssimos. O nariz é aquele pelo qual algumas mulheres que conheci pagariam verdadeiras fortunas, afilado, delicado e com pontinha levemente arrebitada, que lhe confere altivez. Os cabelos são loiros e lisos, caem sobre os olhos e, ainda úmidos, começam a ganhar movimento com a luz do sol. A boca é delicada, mas não fina, perfeitamente desenhada e pálida, como é pálida a sua pele. Eu, que não consigo ir sequer à padaria sem passar um gloss, logo penso que uma corzinha nos lábios e uma discreta camadinha de rímel nos cílios fariam seu rosto inteiro se iluminar, a cor dos olhos saltar. Ah, sim, os olhos: verdes e com formato amendoado. Entre eles, tão cedo (de manhã e na vida da moça), rugas de expressão: a moça é concentrada e guarda ar preocupado. Os demais passageiros continuam a entrar e, de repente, o rosto da moça se ilumina em um sorriso clandestino, ela está feliz por ver alguém que acaba de entrar e se acomoda, em pé, em frente a ela, junto à porta de acesso dos cadeirantes. Seu sorriso encabulado, com o rosto voltado para o piso, não foi para o rapaz que acaba de entrar – ela não o conhece – foi para si e por ele. A chegada do rapaz ilumina a moça e eu o observo: moreno, com cabelos lisos, castanhos, levemente avermelhados, que um dia foram curtos mas agora perderam o corte, ensaiam ser longos e caem, a todo instante, sobre seu rosto bronzeado e com barba escura displicente, nunca aparada. Ele passa as mãos pelos cabelos e vejo em seu pulso um relógio de mergulhador e pulseiras de couro e macramê. Os jeans do rapaz são surrados, como a camiseta, e todo ele é natureza, riponguice e displicência. A moça, discreta em seu canto, não ousa olhar diretamente nos olhos do rapaz que, por sua vez, nem se dá conta da moça e segue atento à tela e ao teclado de seu celular, digitando freneticamente. A discrição com que a moça se veste todos os dias cumpre seu propósito: a moça é invisível e somente uma curiosa fuxiqueira como eu, que sempre quer ver o detalhe que ninguém viu, percebe a beleza em seu rosto. Aos outros, seu lindo rosto segue despercebido. Infelizmente, segue despercebido também ao rapaz que, somente com sua presença, enche seu rosto de luz, põe sorriso em seus lábios. São opostos, os dois, e seriam casal improvável, mas minhas histórias preferidas são estas: as improváveis e raras, que acabam por dar muito mais certo que as histórias certinhas de casais óbvios, feitos dos iguaizinhos um ao outro, que acabam entediados com tanta redundância. Deixo a moça sonhando, em seu mundinho idealizado, com o rapaz que nunca a notará… Pena: a transformação que um poderia promover no outro era capaz de criar pessoas bem mais interessantes: ela lhe mostraria concentração e introspecção, daria-lhe foco; ele daria a ela liberdade, despojamento e removeria a ruga do meio de seus belos olhos… Mas acho que não será assim e ela levará várias e várias viagens naquela mesma linha, até se dar conta de que muito tempo se passou e nada aconteceu entre os dois, nada vai acontecer.

Vou escrevendo estas linhas em minha cabeça, ali mesmo, enquanto observo esses microtraços humanos que eu não conseguiria observar de dentro do meu carro. A vida, essa com V maiúsculo, essa que se revela em minúsculos detalhes escondidos aos desatentos, essa que fascina, a gente só encontra é no meio das outras gentes; nunca só. Para ver essa vida e senti-la, é preciso o tempo da observação contemplativa, não a velocidade dos automóveis. O ônibus vai chegando a meu destino, é cedo. Diante da árvore pela qual passo quase todos os dias com meu carro, o ônibus faz uma parada. Conto: há seis beija-flores voando na árvore e eu não os teria visto, não fosse este um dia anormal. Deixo o ônibus cheia de vida em mim. Há tempo de sobra antes de dar minha aula, às 10 h. Não são nem 8 h. Planejo ler um artigo antes, iniciar a jornada cedo, que é quando meu cérebro funciona bem. Sento para tomar meu café forte, preto, com pão na chapa e suco de laranja, meu dejejum preferido (tenho observado que, com o passar dos anos, o que é constante em minha vida, o que permanece, é sempre o simples). Logo em seguida, a vida traz, para tomar café comigo, uma alegria inesperada. Os planos para antes da aula se modificam assim, num estalar de dedos, só porque a vida quis e porque vim me colocando em sintonia com a vida, ao longo do caminho. Fosse um dia normal e eu não teria esbarrado com a felicidade, logo no café da manhã.