Hoje recebi encomenda de palavras e é sempre uma alegria tanta quando isso acontece! Em geral, a encomenda vem para situação em que a pessoa que faz a encomenda acha que tem sentimento muito e palavras poucas. Aí, me pede que escolha palavras em que caiba o sentimento, mas tento fazer o oposto: procuro fazer com que o sentimento transborde pelas bordas das palavras. Palavra boa é a que não comporta o sentimento.

Sempre que é assim, peço que me contem a história dos dias que levaram ao dia a que as palavras se destinam. Em geral, a história me vem primeiro em papel, registro seco e formal que marca datas e cronologias, mas insuficiente ao transbordamento. Aí peço que me contem a história com palavra falada; que, se possível, me gravem sua voz falando da história que querem que eu reconte e é interessante ouvir, nas entonações de cada voz, como as palavras já estão ali, há tão pouco a fazer: colocar, em uma ou outra palavra, veste mais adequada à ocasião, pedir que algumas deem um passinho à frente, por favor, que outras abram espaço (sentimento precisa de espaço para respirar), acrescentar pitada de poesia, coisa pouca e discreta, que não mascare a força do sentimento original.

Quando me contam suas histórias, pedindo que eu as reconte, é como se as pessoas me convidassem a visitar os recantos de suas memórias, a passear pelas ruelas de seus corações. Sabe quando se visita, turista, cidade desconhecida e a pessoa nativa nos leva a conhecer lugar escondido que quase ninguém conhece? Visitar o coração das gentes é assim. É honra grande, ser convidada a visitar o coração de alguém, e jamais aceitei pagamento em dinheiro para fazer tais visitas. As palavras me são dadas e eu não cometeria a indelicadeza de revender presentes. Posso partilhá-los: presente de que muitos desfrutam é presente que se multiplica e vai presenteando outros. Embora jamais tenha aceitado remuneração financeira por elas, as palavras são ofício que exerço com fé. Jamais rejeito uma encomenda  e tenho sido fartamente remunerada por cada trabalho com moedas outras, que têm câmbio bem mais valioso que metal qualquer, desses que hoje valem e amanhã, não mais. Quando me chegam as encomendas, as palavras me vêm fáceis, porque é aí que encontram seu propósito, é para isso que me habitam: para contar o sentimento. São palavras-ponte e vivem para o dia em que possam entregar o sentir das gentes a seu destino, nos corações de outras gentes. Hoje as palavras contaram história de menino que aprendeu o ofício de seu pai e pôs tanto amor no exercício desse ofício a ponto de receber homenagem. Ofício simples, que ele exerce de forma nobre, como poucos. As palavras de hoje são para o dia da homenagem.

A menina que fui um dia sonhava aprender, ensinar, desbravar um pouco do universo imenso e desconhecido que a fascinava e queria, se não fosse pedir muito, em meio a tudo isso, ser contadora de histórias, queria contar o que fosse vendo, aprendendo e sentindo pelo caminho desbravado. Hoje, quando entreguei a encomenda, ela me sorriu contente e me fez feliz. Tenho buscado fazer jus à grandeza dos sonhos que ela sonhou para mim, viver de forma a entregar as encomendas que ela me fez. Por enquanto, estamos bem, ela e eu. Com alguma frequência, nos encontramos e em nossos encontros, ela me sorri. É pensando no sorriso dela que exerço cada um de meus ofícios, cada um deles com a mesma fé.