Nasceu em ano bissexto, no dia último do mês de fevereiro. Houve conversas familiares sobre quando seriam comemorados seus aniversários nos triênios que a deixavam desnascida e decidido foi que o fariam a cada dia primeiro de março, sempre que 29 de fevereiro não houvesse. Até certo ponto em sua vida, assim foi feito. Chegou então ao vigésimo oitavo aniversário e, a princípio, ninguém percebeu a mudança que ali se fez, nem ela mesma. Tinha, naquela momento, um emprego em que começava a ser bem sucedida e havia conseguido administrá-lo junto à casa, ao casamento não planejado e relativamente recente, ocorrido em função do surgimento da filha, chegada há dois anos, também não planejada. Julgou-se competente ao administrar aquele turbilhão e construíram o que se podia chamar socialmente de família.

Há mudanças que ocorrem em nossas profundezas que somente serão percebidas muito tempo depois. Por vezes, é possível identificar, passados anos, o momento exato em que se deu em nós a mudança; às vezes conseguimos apenas estimar o momento com alguma acurácia, mas frequentemente é informação escondida sob muitas camadas de ruídos e incertezas. O fato de não sabermos quando ocorreu e, talvez, de não sabermos mesmo que ocorreu, não anula a existência latente da mudança e a existência factual de seus efeitos – em nós e naquilo que nos cerca. Há muitas coisas providas dessa natureza etérea:  não nos são perceptíveis, palpáveis, mas existem.

Fato é que ela e os seus não se deram conta de que, a partir daquele aniversário, ela efetivamente só faria outros a cada quatro anos. Tornou-se, como que por encanto, pessoa de envelhecimento bissexto. Teria quadriversários, embora, a princípio, continuasse a comemorar anualmente. A mudança foi-se fazendo notar aos poucos. Enquanto os sinais do tempo mostravam-se implacáveis entre aqueles com quem partilhava a jornada, nela eram eles sutis, brandos, comedidos. A princípio, havia comentários entre elogiosos e invejosos: “Nossa! Para você o tempo não passa! Deve mesmo fazer aniversário a cada quatro anos!”. Sua pele permanecia a mesma, os cabelos, lindos como sempre foram. Os quilos que se somavam aos amigos, modificando-lhes a saúde e as feições, também não se apresentavam nela. A princípio, foi motivo de alegria ser a pessoa que teria sido, por algum descuido do tempo, agraciada.

Tinha vaidades físicas, muitas, e suas vaidades eram imensamente beneficiadas – e retroalimentadas – pela característica que a distinguia dos demais humanos fisicamente inferiores e perecíveis. Nutria-se de cremes e tratamentos que prometiam a juventude eterna. Com o passar do tempo, aliou aos cremes um e outro tratamentos pontuais, caros e certeiros: clareamentos, drenagens e preenchimentos cuidavam de preencher rugas e seus dias. Tornou-se aquilo uma obsessão. Evitava sorrir: sorrisos causavam rugas e marcas de expressão. A filha crescia. Ocupada com a imagem projetada no trabalho e em sociedade, de mulher bem sucedida e jovial, que não encontrava dificuldades para migrar de um emprego a outro, quando o anterior não lhe apresentasse mais desafios; ocupada também com suas sessões de antiaging, academias, liftings e que tais, a verdade é que pouco foi o envolvimento verdadeiro que teve com a formação daquela pessoa. Pouco doou de si. É claro que lhe assegurou as melhores escolas, as melhores academias, acesso a vários idiomas, roupas as mais caras, cabelos sempre impecáveis e viagens muitas. Emprestou bastante de sua conta bancária à filha. Afinal, era sua filha, merecia ter o melhor e, principalmente, deveria mostrar ao mundo que os pais eram capazes de lhe prover o melhor. A menina teve o mundo, faltou-lhe sempre a mãe.

Seus pais envelheceram e não houve tempo, presa que estava em seu próprio espelho, de notar que, aos poucos, partiam. Seu marido mostrou, como os amigos que tinham em comum, os sinais do tempo – externos e internos. Não tinha ele, há muito, a mesma disposição para estar em toda parte, cercado de gente a todo tempo. Desejava uma vida mais íntima, com maior cumplicidade, o que a ela causava tédio. É bem verdade que a princípio ele chegou a envaidecer-se por ter a mulher mais bela de todas, mas, eventualmente, eles, que uniram-se em função da filha e sempre foram um tanto estranhos um ao outro, tornaram-se estranhos demais, a distância entre os dois foi-se ampliando, até que, sem estrutura que suportasse vão tão grande, a frágil ponte que os ligava ruiu. Separaram-se, distanciaram-se e ela acompanhou, através da filha e de amigos ( dos quais, pouco a pouco, foi-se também distanciando), as notícias de que havia refeito sua vida, ao lado de outra mulher com quem ele parecia ter afinidades, embora nem de longe tão bela quanto ela própria. Ele parecia feliz e isso, a ela, causava estranheza e inveja.

Ela também buscou refazer sua vida amorosa. Havia homens com quem partilhava a idade física, que inicialmente lhe pareciam pares perfeitos, mas por quem sua atração esvanecia-se em poucos contatos: faltava-lhes a idade interna, construída com vivência, aquela que torna boa parte dos homens, finalmente, seres mais gentis, quem sabe até sensíveis; aquela que faz com que um homem saiba como tratar uma mulher. Naqueles que possuíam experiência e sensibilidade, ela, tão presa a traços externos, perecíveis, não via atrativos físicos. Passou a viver nesse impasse e nunca mais foi capaz de encontrar um companheiro com quem pudesse dividir a vida. Não pensava, no entanto, que isso fosse grave, já que não acreditava que fosse impossível ser feliz sozinha, bastava apenas encontrar essa tal felicidade e ela estaria bem.

A solidão que passou a se abater sobre ela era, porém, bem maior: foram-se os pais, foram-se os amigos originais, com quem partilhava a história e, ao tentar substituí-los por outros, mais novos, sentia-se uma estranha deslocada, invadindo a história alheia, como penetra em festa para a qual não fora convidada. O tempo lhe criava ciladas. Não era pessoa que investisse em desenvolvimento interior algum quinhão daquele recurso que lhe fora dado em abundância por um fantástico e surreal destino. Certamente fazia investimentos em cultura – era socialmente favorável ter alguma cultura a apresentar – mas nunca se tornou pessoa sábia. Havia, por outro lado, momentos em que sentia o peso do amadurecimento inevitável, aquele que lhe atravessava os poros quase que por osmose, mas junto aos que partilhavam de sua idade real e camuflada, chegava a ser ela um incômodo: não era agradável a esses outros constatarem, nela, a jovialidade que tiveram um dia; constatarem a passagem do tempo em si. Já entre aqueles outros que lhe partilhavam o viço físico, havia a tal sensação interior de deslocamento e, em alguns momentos, o sentimento de ser um tanto ridícula aquela convivência que a colocava como eterna Peter Pan. Transitava entre os dois deslocamentos e quando sufocada por um, saltava ao outro.

Passaram-se vários anos. Acompanhou superficialmente o nascimento de netos e, envaidecida, ouviu elogios à avó que parecia tia: ninguém diria que não era irmã da própria filha. Não tardou chegar o momento em que a filha passou a sentir-se mal perto da mãe mais jovem e em quem percebia o incômodo ao ser chamada de avó; em quem havia percebido, ao longo de toda a vida, os traços de futilidade e incapacidade de dar-se. Havia, sim, alimentado a esperança de que, com os netos, a mãe fosse capaz da entrega que não tivera para ela mesma. Teria perdoado a mãe se ela fosse capaz de doar-se a seus filhos. Perdeu, finalmente, a esperança de que a mãe pudesse, algum dia, compreender o sentido de viver. Afastou-se.

A vida da mulher bissexta tornou-se solitária, enquanto sua beleza e jovialidade permaneciam inquestionáveis. Houve várias perdas, mas nenhuma chegou a abalar mais profundamente sua estrutura rígida. Ela tinha a vida toda pela frente e a possibilidade de reconstruir-se, mesmo que do zero.

Quando aparentava não mais que 40 anos (o investimento em tratamentos trouxera o retorno esperado, que somou-se à sua natureza), embora sua idade física, incrementada quadrienalmente, fosse 50 e a cronológica, verdadeira, muito maior , recebeu a notícia: aos 90 anos, sua filha acabara de morrer. Imediatamente foi tomada por uma dor assombrosa, brotaram de dentro dela gritos guturais, de que não se sabia capaz. Deviam habitar os recônditos de suas profundas rugas internas. O tempo correu em sua cabeça, mostrando-lhe detalhes e oportunidades que no passado lhe foram imperceptíveis e, assim, desperdiçados. As visões em sua mente fizeram, como que por encanto, que também corresse o tempo em seu coração e todo o aprendizado que deixara de absorver no decorrer de sua longa vida fantástica tomou-lhe, de uma só vez. Repentinamente, sentiu o peso e a leveza de seus 116 anos. Percebeu, finalmente, a iluminação que esses anos lhe traziam. Era sensação boa ver a luz. Por um breve momento, sentiu o que devia ser aquilo a que ouvira outros chamarem felicidade, mas que até então lhe era coisa desconhecida e incompreendida. Seu coração, acostumado a águas rasas, não suportou a imensidão da profundidade. Naquele mesmo dia, implodiu. Foi sepultada junto à filha. Morreu após vislumbrar o que era felicidade, mas amargurada por não ter sabido distribuí-la por sua existência, por não ter sabido dividi-la e, quem sabe, multiplicá-la. Chegou a ver, por instantes, o que poderia ter sido a felicidade, mas jamais alcançou a paz.

__Mariane Branco.

 

Imagem: Retrato de Anna Pitt como Hebe. Louise Elisabeth Vigee Le Brun. 1792.