Há, em Estatística – isso mesmo, Estatística: aí, também, há Filosofia -, uma classe de métodos denominados “Bootstrapping” que, grosso modo, referem-se à geração de várias amostras a partir de uma amostra original. O termo faz referência à ideia de erguer-se, a si mesmo, a partir das alças das próprias botas. É como se a amostra se reinventasse, replicada, e, ao se reinventar, fosse capaz de exibir características até então escondidas: sua reinvenção cria informação nova, gera conhecimento, revela padrões.

Não se sabe bem se é a arte que imita a vida ou a vida que imita a arte, mas entre ciência e vida frequentemente acontece jogo similar: é provavelmente a ciência que busca imitar ou compreender a vida, mas é possível extrair da ciência conhecimento para guiar a vida.

Assim como no método desenvolvido por Bradley Efron, lá no final dos anos 70, na vida, às vezes, é preciso erguer-se pelas próprias botas. Acontece com muita gente; talvez aconteça, em algum momento, com todo mundo: de repente, sem mais nem porquê, o chão que agorinha mesmo estava ali, firme sob os pés, desaparece. Abre-se um imenso buraco. Amigos estão logo ali, à beira do abismo, prontos a oferecer a mão àquele que está em vias de ser tragado. Amigos tentam, esforçam-se, quase são tragados junto e, eventualmente, acabam cansados, exaustos, exauridos: a força da gravidade é implacável e a massa inerte que buscavam salvar transforma-se em corpo pesado, às vezes pesado demais, fadado a ser sugado pelas profundezas.

É nesse preciso momento que cabe ao corpo, aquele que cai – pois é, eu também divaguei e fui ali passear no Hitchcock, mas já voltei: cabe ao corpo que cai, e só a ele próprio, encontrar jeito de produzir alguma leveza, ajudar a salvar a si mesmo. É preciso que o corpo encontre o equilíbrio necessário para amenizar a tarefa daqueles que  tentam resgatá-lo. É assim que ocorre também com o afogado que, quanto mais se debate, mais afunda, mais se enrosca na correnteza que o traga. É preciso que, em algum momento, entregue-se, permita-se flutuar, ganhe fôlego e encontre força suficiente apenas para sair do redemoinho e, então, deixe o corpo solto novamente, para que a corrente certa, aquela que conduz à praia, possa, finalmente, salvá-lo.

É exercício que assusta, esse do entregar-se, acostumados que somos a pensar na entrega, na rendição, como derrota. Às vezes, é exatamente na entrega que se encontra a salvação. É exercício solitário, mas a jornada de cada um é sempre assim, uma jornada única, só, solitária.

Não que não haja amigos; eles estão ali, continuam ali. Os verdadeiros sempre estiveram, sempre estarão. Mas eles têm seus próprios redemoinhos a vencer. É assim mesmo, um redemoinho ao lado do outro, tipo tela de Van Gogh, sabe? Cada um tem um redemoinho pra chamar de seu: uns, menorezinhos, outros, verdadeiros maremotos, mas cada um tem o seu.

A força da correnteza depende também da aptidão do nadador. Difícil julgar, então, ali de fora, qual é a correnteza capaz de tragar alguém. Mas é fato: os amigos estão ali, nos seus próprios redemoinhos e, apesar disso, alguns têm ainda a generosidade de tentar estender a mão. Mas ninguém é capaz de salvar quem não deseja ser salvo. E querer ser salvo envolve o empenho de alguma força; só que não aquela força desesperada, de quem só faz debater-se. Essa, é só dispêndio de energia. A força necessária é interior, focada em criar leveza, equilíbrio, e não peso. É força que reconhece que – nem sempre, mas às vezes, só às vezes – é justamente na rendição que se consegue, finalmente, encontrar a vitória.