É assim o ritual matinal dele: mal abro o olho, sinto as patinhas amassando minha barriga, o que me faz pensar que há, antes, uma vigília de meus olhos enquanto durmo. Diferente do irmão, que já cutucou meu nariz madrugada afora pedindo carinhos, ele respeita meus horários.

Miados até o banheiro: abrir a torneira para que ele pule dentro do box e beba água corrente que, claro, é muito mais divertida que a da tigela, afinal a da tigela não pula nele e não o faz pular. Marcas de patinhas molhadas pela casa, miados até a geladeira. Tem ração seca nos potinhos, mas bacana mesmo é aquela colheradinha do que fica embrulhadinho na geladeira, molinho, com mais gosto de peixe. Comida se transforma magicamente em energia. Corridas enlouquecidas pela casa, miados chamando para brincar: “Ué… ninguém sacou que é hora de brincar? Bora, minha gente, todo mundo já dormiu. Energia!”.

Explosão de energia transformada magicamente em sossego. Miados convidando ao seu posto matinal preferido. Ele parece não compreender – porque é incompreensível mesmo – como os humanos não percebem que o melhor lugar de nossa casa, quando amanhece o dia, é este em que o sol se derrama generoso, ilumina as folhas e flores, deixa tudo com cor vibrante. Este onde os pássaros nos visitam, ainda que ele já tenha se conformado há muito: não vai degustar passarinhos nesta existência de gato de apartamento, mas é boa a sensação de tê-los por perto; talvez seja crença de que um dia, quem sabe, se a preguiça permitir, ele salte do seu banho de sol, naquele acordar que só a musculatura felina é capaz, e abocanhe um deles. Lá fica ele, deitado sobre a madeira quente, deixando que a energia da vida passe por seus pelos e me fazendo, junto, aproveitar a energia da vida também, nesse lugar em que a gente se espreguiça, medita e, feito o Pessoa, fecha os olhos e, sem saber o que é o sol, mas estando sob ele, passa a pensar coisas cheias de calor. Recebo de meu gato o ensinamento de me deixar tomar pela paz de me espreguiçar sob o sol. Retribuo com carinhos em sua barriga peluda. Ele ronrona, satisfeito que só, abre e fecha as patinhas em sinal de contentamento, tenta me olhar com seus olhinhos albinos estreitos, que não suportam a luz – mas que ainda assim a amam – meu gatinho chinês, oriental no estreitamento dos olhos e na sabedoria.

Eu, humana que teima em não aproveitar a vida quando o dia acorda, como é comum aos humanos, agradeço por tê-lo por perto, com sua sabedoria milenar, me ensinando a relaxar e a me deixar tomar pela energia do sol. Vou me deixando ser ensinada por ele, que já me ensinou tanto ao longo dos anos. Vou me deixando ser criada por ele, porque os gatos, sábios, sabem, já nascem sabendo: felicidade é coisa muito simples, os humanos é que complicam.