Se vivo, Julio Cortázar completaria hoje 101 anos. Entre suas obras, a principal, provavelmente, é Rayuela (O Jogo da Amarelinha), que narra o conturbado romance entre o intelectual argentino Horacio Oliveira e a Maga, sua descacetada namorada, ambos vivendo em Paris e cercados por um grupo de amigos igualmente intelectuais, amantes de profundas discussões ao som de jazz. Uma experiência interessante é ouvir a trilha dos encontros do grupo, enquanto se lê o livro; experiência possível, já que Cortázar descreve detalhadamente o que Oliveira e seus amigos ouvem a cada encontro.

O título faz referência ao jogo proposto por Cortázar. Pode-se ler os capítulos linearmente, na ordem em que se apresentam, ou seguir o roteiro proposto pelo autor, indo visitar capítulos adiante, “prescindíveis”, e retornando. Há quem diga que o livro conta diferentes histórias, dependendo da forma como se escolha ler. Na verdade, não. Os capítulos “prescindíveis” nos permitem um mergulho na cabeça de Oliveira. Ir seguindo a trilha deixada por Cortázar, portanto, não chega a fazer uma história completamente diferente. A história é a mesma. A experiência é que é diferente. A brincadeira de seguir as pedras e ir aos capítulos adicionais, pulando lá e cá, indo e voltando, leva a um mergulho mais filosófico do que ao se ler o livro linearmente, abrindo mão daqueles capítulos.

Tem que ler fazendo o jogo, claro! E lembrar que, no Jogo da Amarelinha, o objetivo é chegar ao céu, metáfora, aqui, para a realização pessoal, ainda que passando por pulos, cá e acolá. Para quem se animou, segue uma pedrinha, para iniciar a brincadeira:

“(…) É tão triste ouvir o cínico Horacio que deseja um amor passaporte, amor alpinista, amor chave, amor revólver, amor que lhe dê os mil olhos de Argos, a ubiquidade, o silêncio no qual a música é possível, a raiz na qual se poderia começar a tecer uma língua. E é ridículo porque tudo isso dorme um pouco em ti, seria suficiente submergir-te num copo de água, como uma flor japonesa, e estou certo de que, pouco a pouco, começariam a brotar pétalas coloridas, as formas curvas aumentariam, a beleza cresceria. Doadora de infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Tu pareces oferecer-me uma maçã e eu deixei os dentes sobre a mesa da cabeceira. Stop, tudo já está bem, assim. Também sei ser grosseiro, note bem. Mas note bem, porque não é gratuito.

Por que stop? Por medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma ideia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com a ajuda de palavras, cadelas negras: e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo. Muitos amigos meus vivem assim, sem falar de um tio e dois primos, convencidos do amor-que-sentem-por-suas-esposas. Da palavra aos atos, meu amigo; em geral, sem verba não há comida. Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro, já os vi. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto.”

–Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha [edição especial 50 anos de publicação]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. capítulo 93, pp. 458-459)