O fim de tarde começou comigo descobrindo que estava, na véspera de um feriadaço – amanhã não deve haver expediente – sozinha e trancada em um dos laboratórios do trabalho. A tranca eletrônica havia enguiçado. O telefone, claro, não funcionava e eu estava sem celular. Tentei e-mail e não consegui encontrar algum amigo ainda por lá, restava esmurrar a porta. Esmurrei, muito! Já me imaginava dada como desaparecida no carnaval e encontrada tipo “O Náufrago”, depois de um tempão, só que num laboratório. Começava a eleger qual objeto seria meu Sr. Wilson nos próximos dias. Até que fui ouvida e libertada por um rapaz que nunca tinha visto.

Resolvo dar o dia por encerrado no trabalho, tenho compromisso fora dali, mas antes preciso abastecer o carro. Linha Vermelha engarrafada, vou para a Av. Brasil. Abasteço e quando tento ligar o carro, nada. Começo a acreditar em inferno astral. O pessoal do posto empurra o carro para um cantinho. Agradeço, penhorada. Agora, tudo mega engarrafado, o serviço de assistência da seguradora leva um tempão para chegar, mas chega. Sr. Dercy, gente boníssima do reboque, em determinado momento me mostra o controle da minha chave completamente oco, sem o chip ou bateria, sei lá o que costuma morar ali dentro, que deve ter caído ao abastecer – meu carro não é moderninho, precisa de chave para abrir o tanque. O senhor que limpa o posto havia varrido e, com a maior boa vontade, se prontifica a revirar o lixo em busca do chip. Muitas folhas, papeizinhos, canudinhos, mas chip, que é bom, nada.

Sr. Dercy se oferece para ligar meu celular no painel de seu reboque, a essa altura a bateria ameaça  acabar e preciso manter contato com a seguradora. Há um momento em que me afasto e o telefone toca, ele acena para que eu venha correndo atender. Um moço ao lado diz para ele atender, ao que ele responde: “Eu não, rapá! Isso tem câmera! Vai que é o marido e vê um negão lindo assim, feito eu, atendendo. Dá problema pra moça!”. Como o problema do carro não é bateria e não há chupeta que resolva, nem adianta chorar, neném, resta deixar o reboque levar o carro para a base, cancelar o compromisso e chamar o táxi da seguradora para me levar até em casa. Sr. Dercy me diz: “Dona Mônica (que não é meu nome, rio), confie: se a senhora ficou presa lá e está presa aqui, deve ser Deus cuidando da senhora, evitando algum mal”. Sr. Dercy levaria meu carro para a tal base, de onde seguiria para Duque de Caxias, onde mora. Amanhã pela manhã, cedo, vai se esforçar por ser ele a atender o chamado e levar meu carro para a oficina que eu designar.

Fico por ali esperando o táxi. Há, no mesmo pátio do posto de gasolina, um posto escola do SENAC e as pessoas vão chegando, após suas pesadas jornadas de trabalho, para assistir às aulas de capacitação profissional que fazem ali. Todos esperam em uns bancos em frente à entrada, onde eu também aguardo meu táxi. Gente simples, que já ralou um dia inteiro, mas todo mundo vai chegando bem-humorado, contando suas graças e desgraças do dia. Num determinado momento, não aguento mais fingir que não estou ouvindo as piadas e caio na gargalhada. Sou aceita pelo grupo. Conto minha história e eles me dizem: “Caramba! Isso foi pra te salvar de alguma coisa no caminho!”. Uma mora em Realengo, mas, segundo ela, “lá pra dentro de Realengo, não é ali na beira da Brasil, não! Tem que pegar dois ônibus e mais moto-táxi, mas jegue também serve”. A outra está com a perna imobilizada e usa um batom rosa-choque. Os homens reparam no batom, comentam, e ela, toda sensual: “Tô de saco cheio de vocês me olhando com essa cara de pena por causa da perna. Hoje queria todo mundo vendo só o meu bocão. E me aguardem que aquele futebol, logo, logo, volta a ter a estrela aqui brilhando!”. Um me olha e diz: “É, professora – ele me viu cheia de envelopes e deduziu, ou tenho cara mesmo-, isso aqui é luta, é guerra, mas no final vai valer a pena pra nós todos”. O professor deles, que estava atrasado, preso no engarrafamento – veio de Queimados – chega para dar a aula, a gente se despede e fico pensando que teria vontade de ver aquele pessoal de novo, gente risonha, feliz, batalhadora, do bem. Provavelmente, nunca mais os verei, bate uma tristeza e fica só o desejo de que a luta valha a pena, para todos e cada um.

Chega o táxi, um carro bacana, mas estranho, porque não tem adesivo qualquer que o identifique como táxi. Como o motorista já tem todos os meus dados, entro e confio. Ele também me diz, ao ouvir a história – pois é, contei a história para todo mundo, falo pelos cotovelos-, que eu devia acreditar que estava sendo protegida. Um amigo me manda uma mensagem dizendo o mesmo. Adilson, o motorista do táxi, me conta que é contador, mas nesta época do ano tem poucos clientes para atender e complementa o orçamento prestando serviço à seguradora. Mais um trabalhador. Me bate um orgulho da minha gente.

Os amigos que vão sabendo do perrengue em que estou me enviam mensagens carinhosas. Há quem peça que eu avise quando chegar em casa, como pediam meus pais. A amiga de infância diz pra eu aguardar, que depois disso vem um monte de coisas boas. Uma me envia um link de “Favorite Things”, com o Coltrane – que é uma das minhas favorite, favorite songs – pra ouvir quando eu chegar em casa. Me dou conta de que é Dia do Amigo. Bom tê-los.

Chego à conclusão de que não fui retida em meu trajeto para ser desviada de mal algum. Se fui desviada, foi, isso sim, para ir ao encontro de uma dose imensa de bem, de gente de verdade, para receber gentileza e carinho de amigos e de estranhos, para ver de pertinho a vida da “rapaziada que segue em frente e segura o rojão” e ter minha fé na humanidade renovada. Às vezes é bom, muito bom, fazer um desvio.