Quando era criança, eu costumava enjoar nas viagens de carro. Não sei exatamente quão natural foi o surgimento, em mim, da percepção de que me distrair com a paisagem ajudava a distrair meu enjoo. A partir daí, passou a ser meu remédio, ir olhando a paisagem passar. Quando uma paisagem deixava de me interessar, eu me deitava no banco de trás do carro e ia olhar o céu; o céu sempre me interessou. Era tempo em que se permitia que as crianças viajassem mais soltas, com todos os prós e contras decorrentes dessa liberdade. Minha irmã ia na frente, no colo de minha mãe; meu irmão atrás comigo e, em geral, lendo. Eu sempre tive olho sedento por imagens. Ali, deitada, ia fazendo minhas leituras do mundo, inventando as primeiras histórias, vendo o céu passar através do vidro traseiro, vendo as nuvens com formas de bichos que rapidamente iam embora, vendo as árvores dançando em um primeiro plano e o céu atrás, enquanto as curvas da serra nos obrigavam a um traçado sinuoso, causa dos meus enjoos que, assim, deixavam de existir. Talvez tenha sido este o meu primeiro insight de que é possível escolher o que ver, escolher onde pôr foco, escolher o que olhar, escolher desviar o foco do que nos faz mal. O hábito de ir peneirando imagens em qualquer lugar por que eu passasse talvez tenha nascido nessa época e me acompanha até hoje.

Hoje, frequentemente sou eu quem vai ao volante e o vidro através do qual vejo o mundo passou a ser dianteiro. Parada no sinal, olho para cima e vejo o homem contra a luz, parado na passarela. Imagino a espera de um encontro. Uma única imagem, páginas de história. Em outro sinal, num outro dia, estou diante da faixa de pedestres, que naquela hora da manhã ainda é vazia. As cores da manhã já acordaram meu olhar. Em um plano mais alto, após a faixa de pedestres, quatro pessoas provavelmente desconhecidas, enfileiradas e fazendo contraste com a luz, atravessam a passarela com passo involuntariamente marcado, como se desenvolvessem uma fluida marcha. A faixa de pedestres e a marcha dos quatro fundem-se em uma imagem só e a caótica Radial Oeste transforma-se em Abbey Road. Os quatro anônimos transformam-se nos quatro rapazes de Liverpool e me fazem sorrir. É assim que acontece: em algum momento do passado escolhi me alimentar daquela imagem e sem que haja escolha voluntária, essa imagem vem alimentar meu momento presente. É assim que costuma acontecer: a gente escolhe o que ver, escolhe onde focar e, involuntariamente, aquilo em que focamos se acomoda dentro de nós, arranja um cantinho em nossos repositórios de memórias empoeiradas, aquela memória quieta passa a fazer parte de nós – sem que a gente se dê conta – e quando menos se espera, essa memória salta lá de dentro do repositório, sacode a poeira que a encobria e ganha vida nas ruas, faz com que as vidas corriqueiras que se desenrolam numa via qualquer ganhem referências anteriores, referências que lançam luz sobre aquelas vidas. Nesse instante, cada uma dessas vidas, que talvez sejam mesmo corriqueiras, ganha a cor vinda de holofote. Nesse instante, aquela vida parece fazer parte de um espetáculo, como se estivesse em palco de teatro grande. Nesse momento, aquela vida ganha luz sobre si.

Alguns amigos me provocam sobre o hábito de fotografar o que prende meu olho no dia a dia, com câmera ou com memória. Alguns dizem que eu sou meio trambiqueira e tento vender imagem de ilha da fantasia onde só há ilha suja. Zombam da forma como fico fazendo todo mundo olhar aquela árvore, aquela flor, aquela luz, aquele pássaro (e de como enquadro cada um desses para que a ilha suja saia bem na foto de ilha da fantasia). Às vezes riem de mim e aprendi a não me importar. Escolho continuar vendo e tentando fazer ver. Às vezes é uma árvore que tem copa formada por nuvens. A árvore está na curva da estrada que beira a favela e há beleza ali. Às vezes é o arco-íris entre duas palmeiras, à direita de quem atravessa às pressas para pegar o ônibus. Há quem escolha pegar o ônibus e perca o arco-íris, nem o veja. Há pressa e beleza ali. Vários escolhem a pressa, eu escolho a beleza – haverá outro ônibus. Uma pessoa passa, me vê fotografar e decide parar também. Eu e a beleza, de mãos dadas, sorrimos: às vezes conseguimos cooptar alguns e nesse momento somos vitoriosas, mesmo que só uma pessoa tenha decidido juntar-se a nós. Toda pequena vitória da beleza é vitória grande. Às vezes é a favela iluminada à noite, como se fosse enorme nuvem de vaga-lumes e, de novo, em meio ao breu e à miséria, há beleza. Às vezes é a luz do sol colorida ao atravessar os vitrais do corredor cinzento, tantas vezes sujo. Há sujeira, mas também há beleza ali. Às vezes é a fileira de abricós de macaco, com seus troncos floridos de cima a baixo; às vezes, os flamboyants em brasa; às vezes, os ipês coloridos. No entorno dos abricós, dos flamboyants e dos ipês falta estrutura, falta organização, faltam recursos, falta planejamento, sobra miséria. Mas há, também, em meio a tudo isso o que há (e em meio a tudo o que falta), como em toda parte na vida, beleza para quem se dispuser a olhar. Beleza não resolve problemas, mas muda nossa disposição interior para resolvê-los. Beleza não transforma realidades, mas nos transforma e é a cada um de nós que cabe a transformação do que é real.

Há quem me dê a impressão clara de imaginar que vivo em um mundo alheio à presença de alguns fatores extremamente adversos. Há quem fale de minhas “lentes cor-de-rosa”. Não deixo de ter consciência do lado duro e cinzento da vida ao escolher registrar o belo, apontar o belo, ressaltar o belo. Talvez, justamente por ter consciência da realidade e da adversidade – de uma forma que só eu sei quão real e profunda -, eu faça a escolha diária por me nutrir de beleza. Insisto em chamar de escolha o que não é exatamente escolha, é só a maneira que me é natural e, embora aponte o que vejo, não tento convencer outros a seguir minha escolha. Para alguns, sou a pessoa que anda pelo mundo com alienados olhos de poeta. Talvez o olhar “alienado” do poeta seja como o sorriso largo pintado no rosto do palhaço triste. Talvez o poeta precise de momentos de alienação, precise buscar as cores, exatamente por sentir tão profundamente as dores do mundo, por ver tão claramente os cinzas do mundo. Ele não tem escolha: não consegue não ver, não consegue não sentir. E como o poeta faz poesia disso? Talvez tendo uma consciência muito ampliada de que uma enorme porção de nossas vidas é determinada por nossas próprias escolhas. Essa parte, planejada, não costuma gerar poesia. A poesia costuma nascer do inesperado, daquilo que sacode as estruturas da gente. Essa parte desestruturada, a parte da vida que é parideira de poesia, costuma vir do acaso e o acaso pode chegar vestido de surpresa boa ou de fatalidade. Talvez o poeta saiba (e o que não se sabe é quem é que ensina o poeta) que a maneira com que se preenche as horas escolhidas é determinante para a forma como se lida com as horas em que não nos cabe escolha. Nessas horas de falta de arbítrio – e somente em algumas delas -, o poeta é escolhido -sabe-se lá como e por quem; talvez arbitrariamente – para transformar em poesia aquilo que não se pôde escolher. Nessa hora, o poeta não tem escolha a não ser escrever; a alternativa é ter o peito rachado feito represa que não comporta mais o que precisa vazar. Talvez alguém escolha ler as linhas do poeta e transformar-se a si mesmo por alguns momentos; talvez essa escolha predisponha esse alguém a sentir a poesia diária da vida (talvez ao fazer uma curva qualquer e ver um pássaro levantar voo contra um céu de início de manhã). Talvez esse voo transforme um momento no início do dia desse alguém e, nesse momento transformado, esteja nascendo um dia em que esse mesmo alguém vai gerar uma transformação naquilo que o mundo chama de real. Para o mundo, a realidade é esta, o que é concreto. Para o poeta, a realidade começou antes: lá no etéreo que inspirou a construção do real. A realidade começou no bater das asas daquela pequena borboleta que quase ninguém viu. Alguns chegaram a dizer que ela foi só imaginação do poeta.