No barro de que viemos, o artista molda os povos que moldaram os elementos primordiais que nos formam como povo. Traz um tapa-olho sobre a testa. Diz que, nele, a terceira visão é forte demais. Enxergar além do necessário pode trazer aflição e angústia.

Há quem atribua insanidade ao artista, frequentemente os mesmos que atribuem sanidade aos que massacram os povos que nos originaram – hoje, povos de que não somos parte e que não fazem parte de nós, não nos dizem respeito. São vistos como razoáveis, até salvadores (!), os que impiedosamente desrespeitam e exterminam esses povos e a origem de nós mesmos: as matas, as culturas, os saberes e as curas ainda sequer descobertas – mas certamente necessárias – que a floresta e esses povos abrigam. Estes, que empregam força desmedida para impor, mais que seu saber (saber?), seu voluntarioso, despropositado e desmedido querer, encontram, entre especialistas e detentores do poder, justificativas várias para seus atos; justificativas que somente se sustentam se embutidas em uma lógica que se submete e acaba – por vezes desavisadamente; outras, não – ajudando a perpetuar essa mesma cultura que não se percebe insana, gravemente adoecida por ganância, consumo e vaidades ocas que vão tornando oco, como elas próprias, o ventre da Terra, mãe generosa que não suporta mais gestar embriões de futuro, se tantos embriões lhe são repetidamente extirpados, se não parece haver vontade de que esses embriões venham à luz.

Seguimos alimentando uma cultura desprovida de sabedoria; cultura certamente mais numerosa, mas não necessariamente superior, se avaliada sob ótica que faça sentido. Há sabedoria a ser absorvida em culturas outras que se perpetuaram extraindo do ventre da Terra o necessário, os elementos capazes de prover aquilo que, em essência, nos alimenta, nos cura, nos conecta ao todo, nos abriga e nos move. Seguimos cegos ao adoecimento de nossa civilização e essa cegueira ainda há de nos condenar.

Se removêssemos nossos permanentes tapa-olhos, costurados com o tecido de valores espúrios que nos obscurecem a visão, se nos dispuséssemos a enxergar um pouco, somente um pouco; se abríssemos nossos olhos e os aliássemos a um pouco dessa visão que vem do sentir, talvez pudéssemos salvar-nos do destino que temos construído para nós mesmos.

Enxergar demais pode gerar aflição e até mesmo loucura, mas cegueira demais pode gerar extermínio. Deve haver meio-termo sano em que nos reconciliemos com nosso próprio passado; com nossa gênese, meio-termo que nos garanta existência futura no seio da Terra.

Fotos: esculturas do Nêgo. Jardim do Nêgo, Estrada Teresópolis-Friburgo, Rio de Janeiro.