Jacarandá, música da Michele Leal, sempre me faz sentir mais perto de Tia Vera, que nos deixou há exatos 24 anos. Embora na árvore genealógica seja minha tia, ela, de verdade, foi minha avó, já que minha mãe sempre se sentiu mais filha do que irmã dela e já que, também, ela sempre nos deu, a mim e a meus irmãos, atenção, cuidado e amor de vó.
Passado esse tempo todo, já não é com dor que a lembramos, mas com um amor imenso. Saudade? Sim, mas dor não. A vida tem seu ciclo, que deve ser cumprido e aceito. O texto abaixo, que escrevi para ela, fala um pouco desse sentimento. Mas por que este post, aqui? Primeiro, porque decidi que este aqui seria um espaço afetivo para mim. Acho que o mundo anda precisando disso. Também, porque a comida de Tia Vera sempre vai ser, para mim, a melhor que já existiu. Amo a a comida de minha mãe, de minhas outras tias, mas igual à dela, não há. E aí, incluo a minha própria. A música da Michele Leal entra aqui, também, porque ela é uma das personagens da história bonita de encontros que conto no próximo post.

Hoje percorri o caminho que tantas vezes trilhei, levada por tua mão. Neste tempo novo, em que tantos trocam os pés pelas mãos, aprendemos também a trocar os pés por rodas e a vida passa rápido, apressada, através do vidro fechado. O olho não tem tempo de aprender o detalhe. Contigo era diferente, todo detalhe era grande. O ponto bem feito do bordado e do tricot, a ervilha de cheiro, a avenca, as onze horas e a erva dormideira em que você nos fazia passar a mão e cantar: dorme dorme dormideira…
Fui buscando os miolos de pão, que um dia deixei para marcar o caminho de volta. No lugar das casas que a gente namorava, hoje prédios ostentam imponência. Nas casas, os jardins se apresentavam primeiro e convidavam todos a partilhar de sua beleza. Hoje, as grades dos prédios separam solidão de solidão.
Há também, nos novos tempos, você não saberia, muitos espelhos. Parece ser importante olhar para si, ver a si mesmo, o tempo todo. Mas há casas e jardins que resistem e neles, resistimos nós.
Caminhei o caminho completo, atravessei a praça e fui encontrar meu pai em ponto marcado. Cumpádi Melque hoje caminha lento e eu é que o levo pela mão, você também não sabe. Mas não perdeu o humor. Ri de si mesmo e em meio à risada, constata: “Estou feito criança aprendendo a andar, que titica! “. Mas caminha. E ri.
Algumas lojas, as mais antigas, preservam a tradição. Às segundas, só vão abrir depois do almoço. As mais novas, não. Sabem que nos tempos novos, tempo, todo tempo, é dinheiro.
Voltamos à praça e tive vontade de entrar na igreja, sentir teu polegar molhado de água benta fazendo cruz em minha testa. Contigo, e em teus rituais, as igrejas faziam sentido para mim. Hoje (você não viveu para ver, que bom), elas guardam caixinhas onde se pode depositar moedas que acendem velas eletrônicas. Todo aquele que tiver moedas tem direito a seu quinhão de luz. Continuo preferindo as que você acendia e que acendo até hoje, com copo d’água do lado, esperando os sinais deixados pela cera derretida.
Ao lado da igreja, mais uma vez te encontro, em meio às bombas de chocolate e mil-folhas de creme com que você me mimou, desde quando eu ainda habitava o ventre daquela que , sem ter saído do teu ventre, continua a ser tua filha.
No café com mobília antiga, onde o tempo parece ter parado, te escrevo enquanto meu pai lê seu jornal diário, como fez a cada dia, a vida toda. Agora vamos para casa comer comidinha simples e bem feita, daquelas que você sempre gostou. E levamos você junto, o tempo todo.