O metrô matutino da cidade grande separa a gente grande das gentes miúdas. A gente grande vai espaçosa, larga, da beira do mar, onde a cidade principia, até o terço de caminho que lhe é familiar. A gente grande porta ternos, tailleurs, sapatos caros, livros, kindles, tablets e, eventualmente, despojamento igualmente caro.
As gentes miúdas vão em sentido oposto, esmagadas, espremidas, tentando se apequenar ainda mais, na esperança de caber. Vêm de muito depois de onde a cidade finda, rumo ao vigésimo ou trigésimo pedaço de caminho, lugar de labutar. Espremem-se e fixam-se nas telas partidas de celulares gastos, fuga necessária da opressão imposta pela cidade partida. São domésticas, babás, garçons, comerciários, são vários. É preciso muita gente miúda para manter em ordem a largueza em que vive a gente grande.
As mulheres, ainda que miúdas, têm vaidade grande e trazem à face maquiagem vibrante – talvez necessidade de se fazerem ver. As sobrancelhas, desenhadas a lápis em linhas com exatidão artificial, mais parecem de bonecas – mais fuga da realidade que oprime. Não há lugar para sutileza ou discrição ali. É preciso traçar linhas fortes, com firmeza, para existir e resistir, quando se vem de lugares diminutos, invisíveis. As raízes dos cabelos revelam suas raízes, mas o comprimento é selado com química e os fios correm retos (retos demais) até as costas, mimetizando pertencimento e similaridade à gente grande. Alguns cabelos mostram necessidade de lavagem que destoa do apuro das faces cuidadosamente maquiadas. Intuo: lavar os cabelos com muita frequência é lavar junto a química cara que simula sensação de pertencimento entre as gentes grandes. Vez ou outra, uma delas me olha de cima a baixo, me faz sentir estrangeira em minha própria terra. Tento fazê-las ver: pertenço, sou feita do mesmo material que elas, mas algo me trai. Algo em mim, ainda que eu queira evitar, destoa. Elas têm razão: o país em que vivo é outro, muito distante do país delas.
Escolho estar ali, entre as gentes miúdas, rumo a meu exercício semanal de me olhar a fundo.Escolho, semana após semana, fazer desse um exercício de também olhar as gentes a meu redor, enxergar as gentes ao meu redor. Olhar para dentro de si, o trajeto me ensina, é luxo de gente grande, as gentes miúdas bem sabem, pois que essas não têm tempo para cogitar de si. Há quem ache melhor que não cogitem mesmo – clareza demais pode trazer sofrimento e tornar insuportáveis os ínfimos espaços que essas gentes habitam. Vou ali, buscando me reunir a elas e me sentindo ridícula estrangeira com necessidades fúteis diante da crueza das necessidades que absorvo em seus diálogos. Invariavelmente, me vem o pensamento: “E agora, vou falar de quê? Não me sobra do que falar, minha vida vai bem, muito bem. Minha vida é larga, ampla, tenho escolhas”. Só voltarei a ter contato com a vida espremida na próxima semana, no mesmo horário, no mesmo meio de transporte e trajeto por mim escolhidos. A possibilidade de escolha, ao acordar, separa a gente grande das gentes miúdas.
Findo meu exercício semanal de me olhar do avesso, rumo ao ponto de ônibus, na beira-mar, onde a cidade principia, e vou me reunir aos estudantes, essa gente que ainda guarda brilho de mudança nos olhos. O ônibus nos levará à universidade, lugar com potencial transformador, onde decidi, há muitos anos, fincar meu caminho. No banco do ponto, o catador negro, de unhas grandes e sujas, aguarda sentado com seu enorme saco preto cheio de latas amassadas que exalam odor levedado. O volume de latas não deixa dúvida: nem nove da manhã e ele retorna de jornada longa. Três ônibus com destino à Abolição recusam seu embarque. Olho sua pele negra, o aspecto maltratado pela vida e testemunho suas tentativas frustradas de embarcar rumo à Abolição. Abolição, essa que, de fato, nunca houve… Decido me sentar a seu lado no banco e lhe desejo bom dia. Ele fica contente com tão pouco, só um bom-dia. “Vou lhe devolver com um bom-dia cantado, moça!”. Entoa lindamente uma canção do Djavan. Que voz! Diante das portas fechadas à Abolição, ele escolhe cantar. Exerce seu direito à escolha. Escolhe. Meu avesso sorri, feliz por ver uma alma grande escapar à clausura da pequenez.
Que beleza de texto! Somos duas estrangeiras em nosso país e, sim, temos muito a aprender com a gente miúda. É ótima ter de volta essa leitura.
Ah, Maria! Vou me esforçar para postar mais. Voltei a deixar tudo nos cadernos, ando com preguiça de digitar, mas é muito bom receber esse retorno.
Beijo!
Sou Rita Magri, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.