Sabia que podia escrever – tinha ouvido a professora dos primeiros anos primários comentar com a auxiliar da turma -, mas anos se passaram até aquela primeira vez da vontade incontida de escrever a cena, para não esquecer. Foi por causa do menino com caixa cheia de gamadinhos para vender. Ele era sujo e pobrinho, mas quando o sol atravessava a janela e batia em sua cabeça, o cabelo cacheado feito de anjo – anjo caído, sujo e torto – ganhava banho de ouro. Foi isso o que fez com que eu quisesse comprar os gamadinhos: a cor que a luz ganhava quando tocava nele. Quando ele chegou perto e entabulou conversa, pronto: gamei no menino dos gamadinhos e acabei comprando a caixa toda. E eu nem gostava de gamadinho. Aí ele sorriu tão lindo que era, ele próprio, o sol. Tive vontade de levar o sol comigo e fazê-lo brilhar. Não podia, era eu mesma recém-não-menina. Foi ele o primeiro a me fazer pensar em quantos meninos-sol devia haver por aí, todos precisando de uma chance para brilhar. Então escrevi vida boa para o menino. Passei a gostar dos gamadinhos, me faziam lembrar dele,  lembrar das primeiras páginas incontidas. Vez ou outra, quando o sol brilha muito, penso que deve ser ele carregando o sol consigo, sorrindo por aí naquela sua vida doce, macia e gostosa. Feito gamadinho, que era ruim, mas depois do sol, ficou bom.