Cruzar os céus do Planalto Central, me deslumbrar mais uma vez com o céu azul de Portinari do coração do Brasil, como acontece toda vez que pouso aqui, como na primeira vez. Do alto, avistar os gigantescos círculos que fazem pensar em místicas visitas de civilizações mais nobres, mas apenas círculos de devastação, a pretexto de matar a fome. Esta parece ser questão central no Planalto: matar a fome de quê, matar a fome de quem?
Tomar estrada e ver a silenciosa e digna batalha do cerrado resistindo aos avanços da soja, que chega sem pedir licença ao ambiente. Os homens que deveriam tomar conta do Ambiente e dele julgam-se donos decidiram que a soja não precisa pedir licença, pode tornar-se rainha do cerrado. Matar a fome. De quê? De quem?
Descobrir que para além da soja, o cerrado resiste em meio a chapadas, a céus e a águas. Para além da soja, há gente que recebe com crianças, gato, cachorros, sorriso largo, abraço forte e desejo sincero de que sejamos felizes ali na casinha lilás de rede na varanda, com quintal de onde se avista a savana brasileira, quintal onde se acende pira à noite para alimentar energias boas, ver estrelas e assar o que nos mata a fome. Fome de quê?
São vários os alimentos em torno do fogo. Sentar-se ao redor do fogo é retornar aos sentidos; é se deixar tomar pelo cheiro da lenha queimando, misturado ao cheiro verde de mato; ter sensação familiar, de infância, de retorno a um lugar conhecido e bom, onde esses mesmos cheiros existiam; sentir o calor no rosto feito mão quente de mãe que nos acaricia as bochechas; ver o contorno da mata em meio ao breu, olhar o céu, tentar contar estrelas e perder a conta, mas gostar de se perder em sua inumerabilidade e esperar que uma delas caia a qualquer instante, alimentando a esperança de sonhos vãos; acreditar no inexistente, já que tantas delas já não existem e ainda as vemos e para nós são reais; ouvir a sinfonia não ensaiada de grilos e sapos e prescindir da fala, escolher o silêncio de que só os que estão em paz são capazes. Sentar-se diante do fogo é trazer calor para dentro de si, buscar acolhimento primal, sentir-se abraçado pelo Universo.
Amanhece e é hora de estradar, colocar a mão espalmada para fora da janela e fazer longo high five com o vento que cruza, amigo antigo que tem permissão e intimidade para afagar meus cabelos e desmantelar tudo; ir com o vento encontrar as águas. Junto delas, conhecer a régia senhora de ar jovial e a quem coube proteger o legado de seu pai, que por sua vez desembarcou jovem da Áustria para proteger o legado de seu tio-avô. Pai que ali encontrou nativa com quem formou família de oito filhos, entre eles a senhora régia de rosto com formato amendoado brasileiro, mas pele alva e olhos de turmalina. A miscigenação que brinda aqueles que chegam de peito aberto a este país-continente foi generosa com ela. É uma belíssima mistura de Brasil e Áustria. Há homens grandes que insistem em que ela abra caminho na propriedade para a chegada da rainha soja. Ela, convicta, insiste em abrir caminhos para que visitantes como nós vejamos as águas, sintamos a fragilidade e a força do cerrado, juntemos nossos corações e nossas vozes ao clamor do cerrado. Traz consigo a neta, menina moleca de talvez 7 ou 8 anos, bermuda e sem camisa, ainda não moldada a meninices que a roubariam de si. Valentina pergunta: “Posso, vó?” e, mal ouve um sim, toma impulso e parte intrépida em voo alegre para as águas. No salto e nas asas de Valentina deposito minha esperança de que sua mente registre a memória dos momentos junto à avó, de que seu coração seja valente e a ajude a proteger o legado da avó, a reconhecer e defender a soberania do cerrado.
Encontramos a trilha e, nela, as marcas daqueles que nos antecederam. Nas esculturas de pedras, a certeza de que não nos conhecemos, mas partilhamos mais que o caminho. Chegamos ao mirante. Diante da imensidão de águas e cores de Almécegas I, eu, pequena, não resisto. Involuntariamente transbordo, contribuo com algumas gotas salgadas, insignificantes, para a imensidão de águas doces. Seguimos a Almécegas II, mais deslumbramento. Formações geometricamente esculpidas em seu topo, com o esquadro e o cinzel dos ventos e das águas. Nas formações de nuvens cinzentas, o aviso: somos bem-vindos, mas o lugar não nos pertence, nunca nos pertencerá. Ali imperam as águas. Parto feliz que seja assim, grata pelo tempo em que fomos acolhidos, grata por ter olhos de ver e grata àquela senhora, que nos abrindo caminhos, nos permitiu ver. Desejo bênçãos à sua família e aos que a sucederão.
Partimos rumo à paisagem lunar. O Brasil é tantos que até a lua o Brasil comporta. Antes de encontrar o excêntrico e negro solo lunar, atravessamos vastos campos de singelas e minúsculas florinhas amarelas. Junto ao verde da vegetação quase sempre rasteira, ora ou outra alta, junto ao céu de azul e branco nítidos, retomo minha bandeira, estou envolta em minha bandeira. Ponho os pés na lua, caminho por seu terreno acidentado e então é hora de regressar. O pôr do sol e os buritis passeiam pelo retrovisor.
Volto ao fogo, dorme o dia. Bruma, a gatinha preta, pula a janela e vem se deitar comigo. Escolhe, em meio a tantos lugares possíveis, dormir em minha barriga e me lembrar o atávico, primal. O coração do Brasil pulsa forte em mim e eu, nele. O Universo me abraça, seu abraço é quente. O Universo vem dar de comer em minha boca. Por um bom tempo, minhas fomes, estas que não sei bem de quê, estão saciadas.
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