O dia dos doces sempre me faz viajar ao passado. Na véspera do dia dos doces, minha mãe organizava aquelas várias caixas em uma mesa grande, as caixas dos doces que tínhamos escolhido junto dela, e íamos, os três irmãos em fila, cada um com um saquinho na mão, rodeando a mesa e preenchendo os saquinhos com gostosuras. A gente gostava que o saco quase não fechasse, tinha que ter muito doce. A tradição havia começado porque em um setembro em que eu ainda não existia, a mãe, que sempre trabalhou muito, vendo-se fora de sua cidade e sem ter com quem deixar meu irmão mais velho, então bebê, fez promessa a Cosme e Damião: se encontrasse uma babá que cuidasse bem dele, daria doces todo ano. Assim chegou a Dida em nossas vidas e ajudou minha mãe a nos criar.

Depois de tudo acabado, aquele monte de saquinhos em várias fileiras organizadas, a mãe fazia prato com algumas das doçuras, vela, copo de água e colocava debaixo da árvore que ficava em frente de casa. Também ela não sabia nos explicar muito bem por que era assim. Meu irmão, o glutão-mór, reclamava, achava desperdício aquele doce todo que ninguém ia comer. Criada católica, a mãe não tinha muita profundidade ou conhecimento sobre os ritos de nossos antepassados – aqueles que não sabíamos bem, mas certamente tínhamos, crias que somos de brasileiros e portugueses. Ela não sabia bem as razões, mas repetia o rito, acho que receando que os santos revertessem o resultado da promessa se ela não fizesse tudo direitinho como lhe ensinaram. Os antepassados, no entanto, faziam-se presentes em nós de alguma forma, porque, ao final, achávamos bonito deixar o prato de doces junto à natureza. Eu pensava, naquele tempo, que estávamos alimentando fadas e duendes invisíveis que deviam morar entre as plantas. Ficava meio frustrada ao ver, no dia seguinte pela manhã, somente as formigas devorando os doces. Sempre esperei encontrar mordidas maiores, as dos seres encantados. Havia energia boa ali.

Houve um ano em que minha mãe decidiu que íamos dar os doces às crianças de um orfanato. Eu me rebelei, sempre eu, a rebelde: “E os meus amigos, não vão ganhar doces? Também são crianças! Toda criança tem direito a doce, as que têm pai e as que não têm!”. A mãe comprou mais doces. Teve doce para a criançada do orfanato e para os amigos. Até hoje lembro os olhos brilhantes naquela primeira vez que encarei olhos órfãos; alguns, órfãos de pais vivos – como, afinal, também eram alguns de meus amigos, embora morassem em casa. Eu tinha razão: toda criança merece doces. A mãe também tinha razão: toda criança merece doces, mas as que nada têm merecem ter algo. No dia dos doces, porém, as ausências eram esquecidas, tudo era só alegria, havia distribuição farta de sorrisos entre as crianças vizinhas. Todo mundo contente, inclusive nós três, que dávamos alguns e recebíamos outros tantos. Era dia de troca.

Houve outro ano em que espalhamos o boato de que haveria distribuição de muitos doces na casa da vizinha rabugenta, a que havia furado nossa bola. Quando juntou em sua porta aquela criançada berrando por doce, a velha de maus bofes ficou enfurecida. A gente gargalhava.

Os doces que recebíamos iam todos, juntos, para uma enorme vasilha e iam sendo consumidos de acordo com seu nível de gostosura. Os zorros duravam nada, doce de leite e pingo de leite também não. Chegava um ponto em que havia só os suspiros, acompanhados pelas gelatinas rosa-choque e amarelas, cobertas de açúcar cristal, que no início eram consideradas ruins, mas ao final, na escassez de coisa mais saborosa, até que não eram más. Na mesma categoria, os corações de batata-doce e abóbora. Sobravam também, era lei, as marias-moles, que detestávamos – nós e todos os outros – e que insistiam em vir em todos os saquinhos. Aprendemos cedo a transformar contrariedade em risada. Nós nos juntávamos então aos amigos, cada um trazendo suas marias-moles não consumidas e aí o dia doce chegava ao seu ápice: pique Maria-mole! A gente corria atrás dos outros, com aquelas marias-moles nas mãos meladas e quando conseguia pegar alguém, esfregava maria-mole na cara, no cabelo, na roupa, no corpo. Terminava todo mundo grudento e imundo, mas os sorrisos exaustos, aqueles sorrisos que iluminavam as cabeças deitadas no chão, sobre pescoços cheios de cordões pretos de sujeira melada misturada ao suor que escorria… ah, os sorrisos… eu não sabia, mas eram eles o que havia de mais doce naqueles dias.