A gente acorda cedo e a mãe já prepara café. Diz: “Toma, filha, leva uma garrafinha térmica. Vai ser bom ter café quentinho se estiver muito frio lá em cima”. Faz lembrar o tempo em que ela preparava a merenda para a escola. Lembra também a preparação para outra trilha, com acampamento, há muitos anos, a tia me oferecendo casaco para levar:
__Leva este! É lindo!
__Tia, não vou pro acampamento com esse casaco todo peludo, espalhafatoso! (a tia sempre foi peruérrima – naquela época era mais)
__Então! Exclusivo! Vai desfilar no acampamento! (eu gargalhava, mas preferia ir mais básica).
Aí lembro, no mesmo acampamento, eu acordada no meio da noite pelo primo, os dois já fora da barraca de campanha improvisada, porque eu ia rolando dormindo, grudava nele pra me esquentar e o levava junto. A gente ria e voltava para a barraca. Eu voltava a dormir e a rolar. É difícil, para quem dorme esparramado e gosta de grudar nos outros, esse negócio de dormir em barraca conjunta. Lembro o acampamento da barraca inundada, na noite do meu primeiro porre. O mundo girando, a água subindo e um infeliz ao longe cantando Acontecência: “Chuva desce pra regar a terra, engravidar semente...”. Primeiro odiei Acontecência – me lembrava ressaca. Depois amei – me lembrava aquela noite… e como teve história aquela noite e como a gente ri até hoje quando lembra daquelas histórias! Tenho apelido  com que a família inteira me lembra, até hoje, daquela noite.

Volto à preparação da trilha de hoje. A gente toma a estrada, encontra o restante do povo e começa a subir. No início, é só beleza e deslumbramento. Em seguida, há os presentes deixados pelas vacas justamente nos lugares em que a gente ameaça tropeçar. Há as vacas, propriamente ditas, bonitinhas, curiosas, vindo ver de perto os visitantes. No meio, quando o mato já é alto e a aranha armadeira ameaça pular em nós, começamos a nos perguntar o que é que a gente faz ali e passamos a andar com cuidado para não enfiar os pés em buracos. Cada um vai cuidando dos outros, avisando: buraco aqui, galho ali, olha o gorro que caiu! E é assim: cuidado mútuo, entre os vários que se uniram para estar ali, mesmo os que nunca se viram. Não precisam ter se visto antes, a trilha une todos. Os que cruzam dão bom dia. Nas trilhas há sempre bom dia, boa tarde, o melhor caminho é por ali, falta pouco – tudo vindo de desconhecidos. Nas trilhas, há pequenas esculturas de pedras empilhadas, nos mostrando que dividimos algo mais que a trilha. Nas trilhas, há sempre gentileza de sobra, solidariedade, sorrisos. Nas trilhas o mundo nos mostra que pode ser bom, as pessoas nos mostram que mesmo no caminho estreito que beira o penhasco, há espaço de sobra para a gentileza. Na parte final, a mais íngreme, as mesmas cordas que lá embaixo são amarras, ali são amigas, auxílio para mostrar que cada um é capaz de erguer-se a si mesmo, desde que pise nos locais certos, faça algum esforço e confie na corda. A essa altura as panturrilhas já esticaram tudo o que podiam e já se pode antecipar as dores do dia seguinte, então a gente volta a se perguntar que tipo de maluquice nos leva até ali. Até que chega o cume e nesse exato momento, quando a vista se despe… ah! Aí tudo (tudo mesmo, não só a subida árdua) faz sentido. Aí a gente dificilmente consegue não abrir os braços e se deixar tomar pela imensidão, pelo silêncio, pela luz, pela proximidade das nuvens eventualmente abaixo de nós, dependendo de quanto se tenha subido. Aí a gente se sente – logo ali, tão isolados – conectados com o todo, seja lá o que o todo for. Aí a gente se senta e quando conta que a mãe mandou café pra todo mundo, que tem açúcar pra quem quiser e vários copinhos, é festa. Mesmo que a pessoa desastrada derrube a garrafa e a quebre antes que qualquer um possa provar o cafezinho feito com tanto amor e tenha que retornar com cacos chacoalhando na mochila, ainda assim é festa. Na trilha, a gente ri disso tudo, faz parte das histórias que vamos contar. Ninguém quer que seja a pessoa desastrada a armar o disparador da máquina e a sair correndo para junto do grupo – foto de todos -, medo de que a desastrada derrube o grupo do despenhadeiro, do mesmo jeito que já derrubou a garrafinha e um monte de outras coisas. Foto, “causos”, olhar a vista que não acaba, lanchinhos. Na trilha, o sanduichinho mais muquirana é banquete, as barrinhas de cereal são doces dos céus, bananinha-passa, nem se fala. Na trilha, a sopa horrorosa de pacotinho fica delícia e alguém explica que deve ser porque foi feita na mesma panela em que fulano fez miojo primeiro, o miojo deve ter temperado. Na trilha, escorregar no barranco de terra faz parte, ninguém se incomoda, sujar a roupa é quase obrigação, ver a luz se transformando à medida que as horas passam e ver vaidades sendo gradativamente apagadas com a luz, à medida que a trilha avança para dentro de nós; ver até a moça mais vaidosa, aos poucos, não se importar mais com o cabelo esvoaçado, com a unha que quebrou, com a falta de batom, porque o que há em volta é tão maior e pode-se caminhar tão mais leve sem as as cascas de artificialidade, cobrindo-se com o contato do que é real… Na trilha, as palavras jorram fáceis e brincam pela cabeça, vão dando as mãos umas às outras em dança espontânea feito ciranda, unindo-se em espiral que, quando vejo, sem que houvesse planejamento, tem núcleo que faz sentido. Na trilha, há que assinar o livro guardado em meio a círculo de pedras, protegido dentro de latinha e já assinado por tantos outros, e é bom sentir-se em comunhão com aquele monte de outros que nos antecederam. Nas assinaturas enfileiradas e guardadas dentro do círculo, colocamo-nos unidos, sem nunca nos termos visto.

Na trilha é assim, não há meio-termo: há quem ame, há quem odeie. Eu amei desde a primeira. Desde então, foram tantas, mas no fundo é sempre a mesma, que sigo trilhando desde aquela primeira. Elas vão-se emendando dentro de mim e eu sei exatamente as costuras de cada trecho de trilha em minha alma. Sei daquela que fiz nos dias que antecederam a cirurgia que assustava. A trilha era para vibrar que tudo desse certo, mas se tudo desse errado, era da lembrança da trilha, meu templo, que tiraria a energia para trilhar o que houvesse a trilhar e para fazer dar certo, porque o certo é o que é. Sei da outra trilha que fiz, meses depois, agradecendo o resultado. Há quem vá aos templos; eu vou às trilhas e nunca consegui encontrar templo em que me encontrasse mais. Sei o que cada passo e cada detalhe, em cada pedaço de cada trilha, me ensinou. A trilha passa diante de meus olhos e eu não consigo enxergar a vida sem trazer a trilha em mim, não consigo vislumbrar futuro sem me colocar na trilha. Viver e trilhar se confundem e é assim que deve ser. Se não se confundirem, é porque se passou pela trilha sem absorver seus maiores detalhes, aqueles que ela planta dentro de nós.

 

 

 

PS: Não consegui encontrar o autor da imagem que ilustra esta postagem, mas não encontrei outra que a traduzisse tão bem. Se alguém, por uma dessas trilhas casuais a que a vida nos leva, esbarrar com ela e souber me informar para que eu  possa creditar, agradeço.