Hoje à noite fazia frio em uma esquina de Botafogo onde, sentado em um canto escuro, havia um homem encolhido, vestindo bermuda. Enquanto eu passava, um casal lhe ofereceu um pote com algo que parecia sopa; deram-lhe também uma colher. O desabrigado sorriu, disse que estava mesmo com fome e frio. O casal sorriu de volta, eu e outra pessoa que passava na hora, testemunhas casuais, sorrimos. É natural ao ser humano sentir felicidade diante de atos de gentileza.

Logo adiante, em outra esquina, havia o homem vendendo amendoim, vestindo terno e gravata, cheio de dignidade, ao lado do cartaz que anunciava a possibilidade de encomendar seus amendoins, com sabor especial, para eventos. Várias pessoas aproveitavam o trânsito parado para comprar e ele agradecia sorrindo. Eu sorria também, de dentro do meu carro. É natural ao ser humano sentir felicidade ao ver alguém construindo seu caminho com dignidade.

Há a mulher que diariamente coloca dose extra de dignidade na atenção a todos a quem serve o café. Há as que limpam os corredores do trabalho e sempre me dão bons-dias, boas-tardes e boas-noites sorridentes. Há a outra que há anos vem ajudar a colocar ordem na casa e que, quando a abraço agradecida pelo tanto que já fez por mim, me diz que ajudamos uma à outra: ela ajuda a organizar minha casa; eu a ajudo dando trabalho: ajudamo-nos mutuamente, com a amizade construída ao longo de anos. Há o aluno que precisa trabalhar para se manter e por isso só pode chegar às 14:20h para a prova que começa às 13:00h e termina às 15:30h. Ofereço reposição, ele me diz que está estudando para conseguir fazer a prova no tempo que terá disponível. Precisamos fazer acordo com a turma: esquema mesa de pôquer, ninguém pode sair até que ele chegue.Todos concordam: é natural ao ser humano ser gentil diante do reconhecimento do esforço do outro. Corrijo as provas de forma cegada, sem olhar nomes, como acho que devam fazer os sentimentais que não queiram arriscar o rigor ético. Prova meio difícil, talvez, e quando finalmente vejo a soma de pontos associada ao nome do aluno que cruzou a cidade para estar ali em tempo reduzido, solto um YES!!! Sorrio: ele não sabe, mas carrega consigo minha crença de que conhecimento,  dignidade e esforço podem transformar realidades.  Ele carrega minha esperança  como tantos outros alunos, sem saber,  já a carregaram, ao longo de anos em salas de aula. Cada vez que um deles vence, venço um pouco também, porque cada um deles é prova de que minhas crenças não são vãs. É natural ao ser humano sentir felicidade diante da confirmação de suas crenças.

Ando me agarrando a essas pequenas felicidades diárias como um náufrago se agarra à tábua que talvez, quem sabe, o leve a um lugar onde possa pisar, onde possa viver. É que os noticiários nos têm feito ver tanta mesquinhez, tanta vilania, tanta falta de caráter, tanta monstruosidade, e há todo o resto, as  pequenas e grandes descortesias quotidianas que insistem em nos fazer descrer, então às vezes fraquejo e ameaço acreditar que o homem é só isso, essa coisa ruim que estampa os jornais e que parecem querer nos fazer acreditar que nos é natural. Aí me vejo inundada de tristeza, daquela tristeza profunda que só a desesperança é capaz de promover; mas não tenho vocação para a tristeza, sinto-me estranha dentro dela, e então há essas pessoas que me trazem de volta ao meu lugar-comum, essas que não têm a mais vaga noção do quanto alimentam meus dias, essas que distribuem sopas quentes, generosidade e sorrisos anônimos pelas esquinas, essas que têm as mesmas saudações animadas de sempre, nos corredores e atrás dos balcões, essas que correm de um lado para o outro em busca de transformar suas vidas, abrindo mão de quaisquer eventuais privilégios, aceitando apenas aquilo que não as faça abrir mão de sua dignidade. Essas pessoas, que não se sabem, vão-se entranhando em meus tecidos, há todas elas em mim e quando caminho, levo-as comigo, como cada uma delas leva um pouco de mim, nem que seja apenas minha gratidão. Há também, claro, a certeza de que pelo menos uma pessoa, pelo menos uma vez, sentiu da mesma forma que eu, e então deve haver outros, eu não estou só. É natural ao ser humano sentir felicidade ao perceber que não está só:

Os Justos
(Jorge Luis Borges)

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

 

Arte: James R. Eads.