Que o poema venha, abra os braços grandes e fortes diante de mim
e receba o que transborda, o que não cabe
num peito espremido, pequeno para todas as dores
que as gentes andam por aí a nos impor que têm que ser sofridas.

Não acho que dor seja obrigação e quando a dor chega,
como chegou quando vi o ambulante das ruas, que tinha Ruas no nome
e era conhecido como Índio,
ser espancado até a morte ao defender o gay conhecido por Brasil
do ataque dos trogloditas,
aquele ataque no meio de outros que assistiram passivos
(talvez por choque)
e chocou o Brasil que vira a cara o ano inteiro para o Brasil
(esse Brasil, gay amigo de travestis das ruas – por isso parente da vítima fatal, Ruas),
como vira a cara para tantos outros Brasis,
quando a dor vem desse assombro
com a tragédia anunciada que resume tantas minorias a uma só,
dou uma escapulida pela estrada que é meio escura,
sem saber bem o que vem no caminho,
mas lá na frente me jogo, junto com tudo o que trouxe,
e confio nos braços do poema
como confiei um dia ao me jogar pros braços do pai na piscina.
Poema me pega no ar.
Poema sabe acolher gente com dor pesada e tudo.
Poema abraça, tira a dor das mãos da gente e toma para si, põe a dor na mão
e na mão gigante do poema a dor é pequena.
Poema sopra…
lá vai a dor pelo ar.
No sopro do poema, dor ganha leveza e dispersa.

Poema vai acolhendo tudo o que não cabe
no peito e nas mãos da gente,
e tudo o que precisa vazar
(há coisa líquida que pode estourar o peito):
às vezes alegria, às vezes tristeza, às vezes amor,
às vezes vazio, às vezes êxtase, às vezes decepção,
às vezes desprezo, que acho mais triste que ódio,
embora este eu talvez não conheça.
No ódio, acho, deve haver algo
e algo sempre pode virar outra coisa.
(No desprezo, há o nada onde um dia houve algo.
Desprezo mora num buraco no peito).

Poema também sabe acolher felicidade que não cabe em um peito só.
Poema colhe aquilo tudo nos braços e depois se disfarça de árvore.
Aí vem um, deita ali debaixo daquela sombra grande, fecha os olhos, depois olha pra cima,
passeia os olhos por aquelas folhas etéreas, vê fruta madura e carnuda,
pula no poema e vai colher fruta no pé.

Precisa ter jeito pra subir em galho de poema
e há quem guarde o jeito de outros tempos.
É prudente trazer algo da infância pra subir no pé de poema.
Quem tenta escalar o poema só com o que traz de adulto,
sem entrega ou inocência alguma – mesmo em poema de sacanagem -, se estrepa todo,
feito o amor de Drummond se estrepou ao pular o muro e subir na árvore.

Mordida na fruta do pé de poema faz escorrer caldo bom
pelos cantos da boca da gente
e a gente sai por aí com sorriso besta e gosto de doce-azedo na boca,
alimentado de coisa fresca, nutrido.
E um dia, lá na frente, vem um vento quente e traz nele um cheiro
e a gente lembra aquele gosto
e sente o gosto na boca
e descobre que uma semente de poema brotou lá dentro
e vez em quando dá fruto
que estoura sem ser mordido.